sábado, 23 de julho de 2011

Um fado, como se fosse um fado

Já não sei se te perdi nesses olhos por onde andei, mas sei que foi quando te senti, que os meus olhos me disserem que te amei. Se te encontro no vazio dos muitos olhares que trocamos, foi só porque senti, dentro de mim, o frio dos beijos que não beijámos. E olhei então bem para dentro de ti, sempre nesta procura de te ter, envolto nos ventos com que me parti, à procura dos mares do saber e não saber. Então, lá mesmo muito ao fundo, senti vivo o desejo de te ter, mas perdi-me esfacelado pelo mundo, e sei que se me perdi foi por te querer. Depois, beijei-te todos os sentidos, e também os olhos e a boca, e sei que te beijei tudo o que consegui sentir, numa busca frenética e quase louca, de me deixar ficar sempre agarrado à ideia de partir. E no fado que tem sido o meu destino, neste imenso medo de te perder, fui caminhando sempre por esse teu caminho, nesta angústia de te ser e de não ser. Fiquei sozinho, abandonado, completamente perdido, cantando só para ti o fado do meu chorar, esse fado que tem sido o meu destino, feito deste choro, que choro, sempre a cantar.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Sentir-me teu

Ah! Como te amo, Amor! Como te amo! E tu sempre a duvidar!
Um dia vi-te, e é desde esse dia que me sinto permanentemente a acordar, para a vida, para ti de novo, e de novo, numa constante e obsidiante ânsia de te ter, sempre. De te ser, sempre, mesmo sem to conseguir dizer, por já nem conseguir falar.
Amar, amar, sem mesmo saber o que é amar. Como é amar. Amar só por amar, e nisso caber o Amor. Todo!
E os ventos embrulharam-me em espanto, num celofane só nosso, e fui contigo por caminhos que vou encontrando, descobrindo, e onde te encontro a ti também, a cada esquina do tempo, sempre tu, sempre azul como o céu que um dia encontrei escondido dentro do teu peito. Escondido dentro do teu olhar. Escondido, para que só dentro de ti eu o pudesse encontrar.
Dizer-te tudo isto? Mas como, se as palavras são tão pobres, e eu tão pobre de palavras? E de amor! Mas sonho! Nisso sou rico. Muito rico acredita. Sim, apenas sonho, um sonho de te acordar, para partirmos juntos, cedinho, pela montanha do nosso esquecimento, sempre a subir, sem parar, e só nos podermos lembrar deste amor que nos temos, e depois, lá bem no cimo da montanha, nos podermos amar, cada vez mais perto do céu, cada vez mais perto de ti.
Duvidas que te amo, só porque sou vulcão, só porque não choro lágrimas, mas escorro lavas, escoriáceis e quentes, tão quentes como o amor que tenho por ti. Mas também são lágrimas, da terra, da terra que também sou eu, a chorar, por ti.
E depois as lavas secam, vidram, e eu aqui e ali vou plantando bacelos de um vinho para podermos fazer e beber mais tarde, o vinho do nosso contentamento, da nossa embriaguês por nós, do encontro da verdade com o sentir, e sentir-te, nos olhares que nos damos, e que depois afago, com mãos de nada e de tudo, com as mãos com que te acaricio a cara e os sentidos, e as tuas mãos também, bem apertadas nas minhas.
E sento-me a escrever isto tudo, só para te poder ler mais tarde, e reler, e voltar a ler, sem nunca me cansar. E depois te poder beijar o espanto, que tens em espera, à espera que o dia se faça luz e por fim te possa encontrar, nesse pranto, de por fim me sentires teu, a amar.
Não, não guardo o que escrevo para te lembrar, porque um dia li a legenda de um soneto de Shakespeare que dizia "Guardar coisa qualquer para te lembrar / Seria o esquecimento confessar". E tu sabes que a ti sou capaz de confessar tudo, menos isso. Era mentir. Era mentir-te. E isso eu não sou capaz.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Mais sem data. Apenas dias.

Esta noção que me dá esperança e paz, de que quanto mais sinto a minha dimensão temporal e finita, mais me sinto na necessidade de fazer alguma coisa que fique, para além do tempo, faz-me pensar nos limites que a minha condição humana me impôe, faz-me querer viver de olhos postos em ti, meu amor.
De certo modo o olhar-te assim já é uma forma minha de me eternizar. E os Filhos, e os Filhos dos Filhos já são muito isso, porque nasceram desse teu olhar quando se encontrou com o meu.
O resto, o que escrevo, são bilros que uma velhinha me ensinou a fazer, rendilhados que faço para ornamentar tudo isso. Adeus. Um beijo.

Sempre que escrevo e pinto (hoje já só pinto a imaginar-me a pintar), amo mais, e vejo que isso é verdade porque fico inconstante e inquieto.
As letras e as cores são apenas os gestos com que te aceno a despedir-me. Da vida.

Gosto de ler, ouvir música, aprender. E descubro sempre o que já sei, o que já li, ouvi e aprendi sem ter percebido o que me estava a acontecer.
A verdade é que às vezes penso e sinto, que o meu mundo é já muito antigo, pelo menos tão antigo como o tempo, o que me dá a sensação de ter todo o tempo do mundo.
Mas os teus olhos vêm dizer-me que tenho os dias contados, um a um, pelos dedos da existência, pelos dedos de uma criança que ainda não sabe bem a tabuada.
Ou então tudo não passa de uma vaga fantasia. Como a morte, em António Boto.

Perdi-me de ti e de mim. Perdemo-nos um do outro e de nós, neste procurarmos a esmo esse nós, que só pode estar bem dentro de nós.

Quando crio estou quase sempre mais mal humorado. Apetece-me transgredir, romper com as fronteiras do mundo e com as do quotidiano. Com as fronteiras que os outros me querem impôr. Fico birrento, indisciplinado, insofrido.
Depois penso que o adolescer é, quase por definição, transgressivo, e então sinto-me em fases por que já passei há muito tempo, quando era adolescente, e sinto que preciso de transgredir, de me indisciplinar, para acreditar que ainda continuo a crescer.

O paradoxo em mim,


Mais se data. Apenas dias.

Esta noção que me dá esperança e paz, de que quanto mais sinto a minha dimensão temporal e finita, mais me sinto na necessidade de fazer alguma coisa que fique, para além do tempo, faz-me pensar nos limites que a minha condição humana me impôe, e faz-me querer viver de olhos postos em ti, meu amor.
De certo modo o olhar-te assim já é uma forma minha de me eternizar. E os Filhos, e os Filhos dos Filhos já são muito isso, porque nasceram desse teu olhar quando se encontrou com o meu.
O resto, o que escrevo, são bilros que uma velhinha me ensinou a fazer, rendilhados que faço para ornamentar tudo isso. Adeus. Um beijo.

Sempre que escrevo e pinto (hoje já só pinto a imaginar-me a pintar), amo mais, e vejo que isso é verdade porque fico inconstante e inquieto.
As letras e as cores são apenas os gestos com que te aceno a despedir-me. Da vida.

Gosto de ler, ouvir música, aprender. E descubro sempre o que já sei, o que já li, ouvi e aprendi sem ter percebido o que me estava a acontecer.
A verdade é que às vezes penso e sinto, que o meu mundo é já muito antigo, pelo menos tão antigo como o tempo, o que me dá a sensação de ter todo o tempo do mundo.
Mas os teus olhos vêm dizer-me que tenho os dias contados, um a um, pelos dedos da existência, pelos dedos de uma criança que ainda não sabe bem a tabuada.
Ou então, tudo não passa de uma vaga fantasia. Como a morte, em António Boto.

Perdi-me de ti e de mim. Perdemo-nos um do outro e de nós, neste procurarmos a esmo esse nós, que só pode estar bem dentro de um continente perdido, algures, e que se chama Nós.

Quando crio estou quase sempre mais mal humorado. Apetece-me transgredir, romper com as fronteiras do mundo e com as do quotidiano. Com as fronteiras que os outros me querem impôr. Fico birrento, indisciplinado, insofrido.
Depois penso que o adolescer é, quase por definição, transgressivo, e então sinto-me em fases por que já passei há muito tempo, quando era adolescente, e sinto que preciso de transgredir, de me indisciplinar, para acreditar que ainda continuo a crescer.

O paradoxo em mim, além de ser muitas coisas e haver dele várias definições, é este : por um lado, aceitar a morte de bom grado, mas por outro ter medo dela, só porque tenho contas para pagar ao banco.
De resto, penso que é só ter uma conversa de pé de orelha com Caronte e talvez ele me deixe passar o Estige sem ter que lhe pagar o meu óbulo.


Mais textos de dias sem datas

É curioso como levo anos a pensar e a amadurecer coisas dentro do meu peito, que depois sou capaz de fazer apenas em alguns minutos.

Quando escrevo e crio alguma coisa, sinto que me procuro e que quero ir um pouco mais ao meu encontro. E depois escrevo mais para poder fazer as pazes comigo, e passo a gostar um pouco mais de mim, só porque fico um pouco mais insatisfeito.

Quando era mais novo gostava imenso de tirar fotografias, e de ficar com recordações de pessoas ou de coisas que me tinham acontecido. Mas no fundo, o que eu sempre quiz foi ficar só com as películas e nunca as revelar. Bastava-me lembrar-me do que me tinha acontecido.
Acho-me mais parecido com elas porque sei que sou só, e apenas, um negativo de mim.

Se o observador deturpa aquilo que observa, diz a física, quem escreve também deturpa o que escreve ao deturpar o que pensa que quer escrever. Escrever é deturpar o pensamento, é querer metê-lo nas palavras. E sinto que isso é de facto impossível.
Se calhar escrever não é senão desafiar o impossível. O que dirá a física? Mais uma coisa que eu não sei.

Há pessoas que vou conhecendo aqui e ali, e que são sempre muita gente ao mesmo tempo.
E depois percebo que afinal não encontrei ninguém, quando descubro não serem nada do que pensam ser. Falam, gesticulam, umas vezes choram outras riem-se descontroladamente. Mas
quando depois olho para as minhas mãos à procura delas, estão vazias e só consigo ver uma multidão, onde ninguém é tudo e todos me parecem ser o nada.

Às vezes penso que as pessoas engordam, não com o que comem mas com o que pensam ser na vida. Algumas chegam a ser grandes e a ficar na história. Acham-se imensas, olhando à sua volta de cima do seu metro e qualquer coisa de altura.
No entanto penso que só se consegue ser imenso quando se morre. A morte sim, é imensa.
Pelo menos nunca conheci ninguém que já lhe tenha descoberto os limites.

Quando eu morrer resta-me a consolação da vingança de saber que a minha morte morre comigo. Arrasta-me, mas eu também a arrasto, a ela. Sei que não vou sozinho, como dizem os bêbedos depois de beberem muito vinho. Eles vão acompanhados pelo álcool, eu vou acompanhado pela vida que vivi e que só a morte me pode tirar. Mas ao tirar-me a minha vida também me tira a minha morte, porque a verdade é que nunca mais me vê morrer.
Tudo se acaba e então sim, sei que fico eternamente sozinho comigo mesmo. Mais nada.

São tantas as vezes que me sinto rodeado de pessoas, e ao mesmo tempo terrivelmente só. Até podem haver por lá alguns amigos, mas é difícil que algum seja íntimo. E é só essa intimidade, essa cumplicidade, esse gosto em nos sabermos juntos que penso ser a amizade.
Amigo é uma palavra mais do que estafada. Amigos há poucos. Tenho poucos. Conheço é imensa gente.

Quando não me sinto amado, sinto-me póstumo, e acabo por me esquecer de mim, lembrando-me apenas, e às vezes tão obsessivamente, do que não fui, do que nunca consegui ser.
E quando tomo consciência de que não consigo ser, então é porque já estou morto, mesmo sem o conseguir perceber.

Este rio que sou eu sempre a viver, como um rio sempre a passar, precisava de ser como o vento, e saber, de vez em quando, parar.

Há sempre pessoas com quem sinto que posso fazer bons negócios. Basta-me comprá-las pelo preço que valem e depois vendê-las pelo preço que julgam valer. É dinheiro em caixa!

É quando mais me pergunto quem sou e o que ando para aqui a fazer, que mais dou comigo a sonhar.
E sempre que sonho e depois me consigo lembrar do que sonhei, aproveito para aprender qualquer coisa, mesmo o que já sei.

UM SONETO

Carreguei-te aos ombros da tristeza,
Como se fosses pedaços de memória.
E fui, a pouco e pouco, perdendo a certeza,
De vir a ter algum dia a minha história.

Guardei-te no peito das minhas amarguras,
No fundo de um coração que nunca percebi,
E dei então comigo só, nu e às escuras,
Onde por fim, lá muito ao fundo, te descobri.

Amor, já nem sabia muito bem o que isso era,
E os beijos que te queria dar perdia-os no vento
Enquanto amassava somhos com água e terra.

E só depois, então, quando outra vez te olhei,
É que senti dentro do meu, o teu pensamento,
E aceitei ter-te dado o beijo que te não dera.

domingo, 10 de julho de 2011

mais uns textos que tinha na gaveta

E lavrei sentimentos como quem lavra uma terra já há muito esquecida e abandonada às ervas daninhas. Depois peguei numa charrua a cair de podre e comecei a sulcar a terra como quem escreve as páginas de um livro que é a vida, a minha vida.
E quanto mais sulcava essa terra adormecida, mais ia juntando as palavras umas às outras, a tentar encontrar-lhes um sentido.
E a terra assim arroteada, ia a pouco e pouco sendo um livro. Depois fixei bem o meu olhar também já cansado, e vi que a terra era eu.
Foi quando peguei no saco do semeador, e às mão cheias semeei aquela terra com pedaços do que restava de mim.


Um dia dei comigo a pegar na cesta de costura que tinha sido da minha avó e a começar a passajar uns rasgões que reparei que a vida, com o tempo, me tinha ido fazendo na alma.
Mas quanto mais cosia, mais rasgões havia. Foi quando percebi que a minha alma se estava a rasgar toda, a desfazer-se, puída pela inexorável passagem do tempo.
Fiquei sozinho, ou quase, ao ver que apenas tinha por companhia, a minha solidão. E senti um aperto tão grande no peito que cheguei a pensar que eras tu a dar-me o abraço por que espero já há tanto tempo.


Fui escolhendo as palavras como um pintor escolhe as tints. Também as misturei, na paleta da minha vida, e depois foi a ouvir as variações Goldberg, de Bach, que te olhei e vi que também me sorrias com os teus olhos.


Tudo me tem acontecido na vida. Até viver. Até dar comigo a pensar que eu não sou eu, mas o outro. E fico sem perceber se o que penso são gestos, se são olhares ou sorrisos.
São com certeza as mais variadas formas de me ser ou de te ser, perdido como tantas vezes me sinto, sem oriente, no meio de uma rosa dos ventos que só aponta para ti.
Mas a carta de marear sou eu e tu ao mesmo tempo. Coisas que me vão acontecendo.


Centauro de mim, sou sempre dois, e faço do meu barco o meu outro eu. E procuro um porto para acostar, atracar, e às vezes, eu sou assim, onde me deixe mesmo naufragar.
Nem sempre os cabos são fortes, nem os molhes resistentes. É quando me dá mais prazer partir à deriva, pelo azul dos teus olhos, eu e o meu barco, centauro de mim mesmo, por esse mar que também sou eu, quando te sinto e te quero, meu amor.


E a saudade foi uma mancha no tempo, como aquelas que às vezes se podem ver no Sol ou na Lua, ou como as que ficam na parede quando dela se tira um quadro que não está no lugar certo.
Depois fui à tua procura e foi com essas manchas que tatuei no peito o teu sorriso.
E senti-me feliz por ser, apenas e só, uma mancha no teu deserto.


Entrei no teu pensamento em silêncio, como deve ser sempre um beijo de amor ou um abraço terno. E foi só assim que depois pude ouvir bem o teu olhar agradecido.


Perco-me de mim e perco-me de nós. Mas sempre que nos encaminhamos um para o outro, acontece qualquer coisa que faz com que de uma maneira ou doutra, nos encontremos.









Relendo e retendo

Tenho andado a reler alguns escritores franceses do século XIX, e vou-me lembrando de que quando os li pela primeira vez, era pouco mais que um adolescente, inquieto e ávido de tudo. Hoje continuo inquieto embora já não tenha nada de adolescente e os anos me tenham secado a pouco e pouco, a avidez.
Desses autores todos, continuo a ter um especial carinho pelo Guy de Maupassant e do "Bel Ami", até porque no fundo, como ele, também eu tive uma juventude aventureira, e nalguns casos, e como diz o poeta, "teria vergonha de a contar seja a quem for"; pelo Honoré de Balzac, com o "Père Goriot" mas sobretudo com "A Comédia Humana", que eu próprio tenho vindo a viver há tanto tempo, rindo-me de tudo e até de mim; de Victor Hugo e a sua inultrapassável obra "Os Miseráveis", turba multa de quem desde sempre tento libertar-me, mas que infelizmente continuo a ver pulular à minha volta, na sua mediocridade e pequenez de espírito; o Émile Zola, com a "Therese Raquin" ou o célebre e corajoso "J'accuse", com que contra tudo e todos defendeu a capitão Dreyfus do farisaísmo hipócrita daquela sociedade, que afinal continua a ser esta em que vivo, e que erradamente, tantas vezes me dá uma ilusória liberdade de me pôr também a acusá-la, esquecendo-me que sempre que lhe aponto o dedo acusador tenho outros três dedos virados para mim; e por fim o Gustave Flaubert, com a "Educação Sentimental" onde diz que "nada é mais humilhante do que ver os tolos a vencer naquilo em que nós fracassamos", o que me faz pensar em tantas coisa por que já passei e de que saí vencido, ou ainda com a espantosa "Madame Bovary", de que me lembro sempre que me sinto traído e do que se diz que ele terá dito à hora da morte "morro, mas essa puta da Bovary vai continuar a andar por aí". E anda, a verdade é que anda, enquanto continuo a ler e a reler tantos livros dizendo para mim como S. Tomás de Aquino, "timeo hominem unius libri" receando de facto, e no seu duplo sentido, o homem que só leu um livro.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

mais dias sem datas

Sou tantas vezes eu, quantas eu quero. E às vezes dou comigo já cansado de ser e de ter tantas vezes esse eu dentro de mim, a ser outros.
Uma espécie do "ser tudo de todas as maneiras", à F. Pessoa. E converso, tenho mesmo longas conversas comigo, àcerca dessas várias maneiras de me ser. Mas é sempre uma conversa inacabada, que me deixa sempre um travo amargo na boca - ou no pensamento? - por achar que fica sempre qualquer coisa por dizer. Às vezes por pudor. Não é que eu tenha vergonha de mim, ou de como sou, e do que digo, mas por vezes fico mal à vontade com algumas formas de me ser. E não são poucas as vezes em que fico pasmado com alguns desses meus eus que até se convencem de que me conhecem. É nessas alturas que me sinto profundamente ignorante. E não sei bem se por mim ou se por eles.

Entro num combóio. Num cacilheiro. Num metropolitano. No trânsito à hora de ponta.
Tanta gente, tanta coisa, tanto barulho! E que vazio, meu Deus.

Sou amigo sem saber nunca porque o sou. Sou amigo, acreditando que a amizade é qualquer coisa que nunca poderei atingir. É um estar entre várias coisas, quase inconciliáveis, ou então que apanas os deuses poderão, talvez, algum dia conciliar.
Mas nunca tenho com quem me reunir em concílio, para depois publicar uma carta, uma encíclita ou uma bula sobre a amizade.
Li Ouvidio mas ele nunca me essinou a amar. Apenas me fez pensar no amor.
Devia ter lido Maquiavel, se eu pudesse ser um prícipe.

Dedilhei as estantes da minha biblioteca, como quem dedilha as teclas de um piano. E dou comigo a procurar Dante para lêr "La Vita Nuova".
Mas se calhar apenas ando a ver se encontro a minha Beatriz.
Depois peguei num livro de Miguel Angel Astúrias, "Arquitectura da Vida Nova", e fiquei a pensar na relação que poderia haver entre tudo isto, e até que ponto também eu tinha que arquitectar uma vida nova.

Tenho para mim que a vida é frágil, muito frágil. Por muito pouco pode partir-se. Só a morte é forte e poderosa e por alguma razão sai sempre vencedora. Por isso tenho sempre uma grande preocupação de pôr no caixote da minha vida, e bem à vista de toda a gente, uma etiqueta a dizer : "Frágil".

Parece que o Emílio Salgari, o escritor que mais li na minha adolescência e mais me fez sonhar, mesmo quando já tinha passado a idade dos sonhos, sem nunca ter saído da pequena cidade onde viveu toda a vida, escreveu e descreveu até à minúcia, as mais variadas aventuras, passadas nos mais variados pontos do globo, com gentes estranhas e hábitos dos mais esquesitos.
E eu ia viajando com ele, por todos esses lugares, fiz parte de expedições audaciosas e entrei em batahas, tanto em terra como nos mares, enquanto eu ia viajando por dentro de mim, e me ia
encontrando aqui ou acolá, espalhado pelo mundo e pelas pessoas, como sempre estive e afinal continuo a estar.

Quando oiço falar de liberdades e garantias, desconfio sempre de quem as diz, e lembro-me daquela história que se conta, penso que passada com António Enes, não sei bem, mas que dizia que quando ouvia a populaça na rua a gritar "Viva a Liberdade", não resistia a levantar-se e em ir até à janela para vêr quem é que ia preso.