sábado, 17 de setembro de 2011

O Tempo

O tempo passa por mim. Passa por todos nós. E começa a deixar-me marcas na pele, manchas próprias da idade que são como que as cicatrizes dos muitos combates que já travei com a vida.
E a saudade de outros tempos, fica como que a tatuar-me a alma, como faziam tantos dos meus camaradas de armas, de quando estávamos na Guerra em África. Só que eles tatuavam nos braços os nomes das mães ou os das namoradas. Eu sempre me tatuei de tempo, e continuo a tatuar-me de tempo, porque acredito que o tempo tem essa tarefa: deixar em nós a sua marca para que nunca nos esqueçamos que ele, quer nós queiramos quer não, não só vive connosco, como vive de nós.
Para mim a morte é ter-se-me acabado o tempo, porque o tempo deixou de me ter, para, por sua vez, poder ele, também, viver.
Mas como sei que há o tempo que se mede e o tempo que se sente, não me importo. Morrer é então deixar de poder medir o tempo, para passar a senti-lo apenas.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A Tarde

Já me tardava a tarde, e a pouco e pouco ia perdendo a esperança de que viesses. E pus-me a sonhar venturas e agarrei em tintas e em pincéis e colori os sonhos em pinceladas de azul, de azuis de várias cores.
E pintei-me a mim mesmo, como se fosse um palhaço no palco da vida. E depois sei que te vi ao longe, a vires ter comigo, como se não tivesses pressa dos meus beijos. E sei que chorei, que chorei lágrimas também de várias cores enquanto tu me tentavas limpar a cara com um lenço feito de sonhos. Dos teus sonhos. Depois deste-me um beijo, longo, tão longo que o tempo passou e levou as cores todas com ele. Mas uma cor era minha. Era a que era a tua. Era esse azul que trazias sempre nos olhos e que só eu sinto dentro de mim a colorir-me os sonhos. E era já tarde, tão tarde que me esqueci que a noite já tinha passado, e os dias, e os anos, e o tempo, enquanto as nossas bocas se continuavam a beijar, de azul, sem tempo.
E os meus cabelos, e as minhas barbas, começaram também a cinzar-se em tons de azul, como se fossem máscaras esculpidas no nada, sem que houvesse gesso, nem pedra, nem madeira, nem bronze. Só o nada ia ganhando forma, talhado a buril e a cinzel, enquanto a tarde tardava em me dizer: amo-te.
Perdi a esperança. Perdi o sonho que tinha pintado de muitos azuis. Perdi o teu olhar, também.
Envergonhado e pobre como Job, fiquei sentado toda a tarde num banco do jardim das tuas fantasias e adormeci. E as tintas entornaram-se, misturaram-se, e um lago nasceu no meio do jardim, com as águas muito azuis, tão azuis como os teus olhos.
Mas um dia, já não me lembro quando, levantei-me, espantei o sono com palavras mágicas e que só eu sabia, esfreguei os olhos e lavei-os no lago, onde deixei cair, de propósito, tudo o que sentia, tudo o que tinha sonhado durante todo aquele tempo que para ali tinha estado, deitado num banco, a dormir. E parti à tua procura, pobre, sem nada, a não ser uma lágrima azul que durante todo aquele tempo tinha guardado ternamente dentro do teu olhar. Sei que depois nos dissemos coisas ternas, fizemos juras de amores eternos, e passei a viver como Diógenos, o Cínico, dentro de uma barrica onde só pedia por amor de Deus a toda a gente que passava, que não me tapassem a nesga de azul do teu olhar, que teimava em ver dentro de mim, embrulhada nos meus sonhos, como se fosse um presente de Deus ou uma dádiva dos céus.
E depois ceguei. Não que tivesse deixado de ver as nuvens e os pássaros e os montes lá ao longe. Ceguei porque deixei de te ver e sempre tive olhos apenas para te olharem e sorrirem de espanto e de alegria. E verem o quanto te amava, o quanto por ti sofria.
Agarrei no meu bordão e fui esmolando beijos e sorrisos pelo mundo fora, e assim andei, sempre perdido de mim e de ti, durante tempos e tempos, até que um dia nasci.
Já era tarde, e a tarde caia, lá ao fundo, no horizonte, onde se conseguia ver nitidamente as nossas bocas unidas num beijo que já não podia mais tardar.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Vou Vivendo

Vou vivendo nesta procura constante, incansável, de me conseguir manter vivo. E nunca sei se viver é ir levando todos estes anos às costas, como se a vida fosse um saco, onde me vou metendo, aninhando, enquanto oiço lá ao fundo, onde começa o fim do tempo, as trombetas a tocarem um requiem pelo dia em que não houve mais tempo.
E vou vivendo neste engano, nesta "Floresta de Enganos" como lhe chamou Gil Vicente, olhando atentamente para as palmas das minhas mãos, quiromante feito à pressa, a ver se percebia onde iam parar as linhas de um surrealismo só meu, onde ia vendo desenhos de Grandville e ia pensando que a vida, de facto, é um sonho, tantas vezes bizarro, mas um sonho.
Depois peguei em Albert Camus e comecei a ler o equívoco, e senti-me um estrangeiro, a fugir da peste, e numa imparável queda, pelo Atlas abaixo.
Depoi fugi da Argélia e lá fui vivendo mascarado de cartaginês e com um saco às costas, pesado, porque dentro dele levava a minha vida.

Vou Vivendo

Quantas vezes

Quantas vezes me sou o somatório de todos os outros meus outros eus?
Quantas vezes percorri caminhos, desci e subi rios que trazia dentro de mim, quantos mares olhei, olhei até que neles me perdi?
Quantas vezes subi as minhas montanhas, e quando lá cheguei acima continuei a subir?
Quantas vezes me fui sendo, enquanto me procurava, acreditando não ter a procura um fim?
Quantas vezes fui mais do que eu para ver se conseguia ser simplesmente eu?
Quantas vezes tenho sido quantas vezes?

Que Estranho

Já morri tantas vezes que até já me começo a cansar de morrer tanto.
Acredito que haja quem viva uma vida inteira sem morrer. Refiro-me a estas pequenas mortes, que vão desde o acabar do acto amoroso até ao desencanto com o que vou vendo à minha volta e que nem sempre me deixa viver. Não sei como é que essas pessoa fazem, ou por outra, estou agora aqui a pensar que se calhar sempre estiveram mortas, só que nunca deram por isso.
Eu cá vou tentando conseguir ser, o que acho possível ser quando de facto se vive.
"Diem Perdidi", dizia Frei Bartolomeu dos Mártires quando se calhar via cair a noite sem ter dado conta que o dia tinha acabado. Apenas o tempo tinha passado!
E eu digo também Vida Perdida, quando às vezes chego ao fim do dia e dou conta que não morri. Que estranho! Que estranho estar vivo e não saber o que é viver. Que estranho!

sábado, 3 de setembro de 2011

AZUL

Olhei para o céu, para esse azul que é da cor da felicidade, e senti como a verdade é verdade: tanto a felicidade como o azul do céu, ninguém consegue agarrar nem tocar ao de leve, sequer. Porque a felicidade há-de estar exactamente na vontade de a ter, de a conquistar e de fazer tudo por alcança-la e retê-la bem dentro de mim, como o céu, que quanto muito consigo ver reflectido nos olhos azuis da mulher que amo.