domingo, 26 de novembro de 2017

A Sombra do Vento

Acabei de ler dois livros de que gostei imenso: "O Menino de Cabul" e "A Sombra do Vento".

Apetece-me falar um bocadinho de "A Sombra do Vento".

É de facto um livro extraordinário e dos que mais me prendeu a atenção nos últimos tempos. Muito bem escrito, de maneira a conseguir arrastar o leitor sem o maçar, com uma história incrível, com laivos de poesia, por um lado, e de uma crueza como só pode haver em guerra e particularmente entre homens que no fundo são irmãos. Fez-me reflectir em muitas coisas que têm a ver com a natureza humana, mas também com a juventude, o amor, a amizade, essa extraordinária forma de amor, a decrepitude humana, a ascensão e a queda de tudo o que, porque é efémero na vida, ainda por cima é aviltado pela inveja, pelo ciúme, pela pequenez de espírito, pelo oportunismo. Lembrei-me de uma frase de Schiller, que sito no primeiro livro que escrevi "A Decadência do Sonho", e em que ele dizia "que até os deuses lutam em vão contra a estupidez". Que verdade, meu Deus! 

A Relação

Há imenso tempo que não vinha aqui escrever, o que não tem a ver com falta de interesse, nem muito menos com falta de assunto. Sou é de facto, cada vez mais dado a pensar, o tal vício de que falo no primeiro texto, ou a falar directamente com as pessoas, olhos nos olhos, para que o que diga possa ser logo mais permutável, mais dialogável, e possa haver logo mais Relação, do que estar aqui neste outro tipo de relação, com uma máquina, que não me deixa ver nela quaisquer emoções ou sentimentos. É uma relação, sem dúvida, mas prefiro a Relação, mais quente, do Eu-Tu, que Martin Buber, de certo uma das minhas referências, imortalizou em livro.

Mas hoje apeteceu-me pensar por escrito. Pensar na Vida, na Morte e na Relação. Tudo na Vida é feito de Relações e na Morte, por fim, da falta delas, restando apenas, e o que é muito, a Relação com Deus.

Voltando a Martin Buber, esse entusiasta da Relação e do Ecumenismo, que tanto propalou como professor nas Universidades de Frankfurt e de Jerusalém, nas suas análises das Relações pessoais como realidades vivas, e que dizia, ao invés do que vem no Génesis, que "no principio é a Relação", e não o logos, dando comigo perdido nos labirintos dos meus pensamentos.

E ao falar da Relação, penso logo no Amor, na Amizade, essa talvez mais pura forma de Amor. E penso tambm, com tristeza, como até a Relação está em crise, mais uma vez, entre culturas, religiões, países, povos, famílias, pessoas. E ser Pessoa, como um Amigo muito querido escreveu neste blog com letra grande, é muito mais do que ser homem ou mulher. É, de facto, ser Pessoa, uma entidade definitivamente muito mais rica, e que está e vive liberta de quaisquer contornos, características, diferenças anatómicas, psicológicas ou outras quaisquer com que a queiram definir, e, portanto, limitar dalguma forma. É o Amor definível, limitável ? É claro que não, e quem disser o contrário, é porque não sabe o que está a dizer, e o que é mais triste, não ama nem sabe o que é o Amor.

 

E continuo a pensar em como nunca mais temos tido a oportunidade de reviver as Relações, as Amizades míticas que na Antiguidade Clássica, de tanto brilharem entre as Pessoas continuam, ainda hoje, passados tantos anos e tantas coisas a preenche-los, a brilhar nos céus, no firmamento, feitas Constelações sempre presentes e a regular as vidas de tanta gente que acredita nos Astros.
Mas constato, com tristeza, que a maior parte das pessoas, substitui cada vez mais esses Astros feitos de Pessoas e das Relações entre elas, pelos astros da moda, do dinheiro, das telenovelas, e o que é mais triste ainda, do futebol e da política em que como astros, não chegam sequer a buracos negros, a anãs brancas, porque alem de tudo, nem sabem o que isso é.

 

Onde está o Amor? Onde estão as Relações privilegiadas, únicas, irrepetíveis pela sua singularidade e especificidade, em que continuo a acreditar, mas que vejo cada vez menos alcançáveis, menos vivenciáveis, menos possíveis, e, pelo contrário, cada vez mais decadentes, mais auto-destrutíveis, num niilismo asfixiante, num entropismo imparável e repetidas até à náusea, como réplicas de ondas de choque de um terramoto qualquer que assola as estruturas tectónicas dos corações humanos.

E hoje fico por aqui, esperando que haja cada mais Pessoas, libertas de preconceitos e de uma qualquer pequenez de espírito, a combater a desertificação do Pensamento, do Amor, da Relação.

Acerca de uma família a fingir.

Hoje dormi pouco e mal. Mas a noite insone fez-me pensar. Sim, pensar, porque o meu cérebro é que esteve acordado. Não digo recordar, isso não, porque tinha que usar o meu coração e o meu coração, esteve sempre ocupado com o amor que cada vez mais tenho e sinto pelos meus "humilhados e ofendidos". E é aqui que começa esta história, que me contaram, mas que até me parece que a sonhei, porque de facto é confusa. Eu até entro nela e não entro. E não sei se ma contaram ou se fui eu que a inventei. Ou li-a num artigo sobre uma família qualquer que um amigo meu de há muito conhecia e resolveu escrever sobre ela no seu blog. E comecei a ler o que ele tinha escrito.
Não escrevo este apontamento como Salústio fez com Lúcio Sérgio Catilina, descrevendo bem a "Conjuração Contra o Senado", em que se envolveu, embora permaneça algum obscurantismo em relação aos factos de que foi acusado na altura, nem como Cícero nas suas "Verrinas", contra Verres, e as suas venalidades e rapinas na Sicília, embora me apeteça estabelecer alguns paralelismos com gente que eu conheço, ou julguei que conhecia, hoje, pobres Catões que à sua maneira, têm vindo a viver obcecados a destruição de uma Cartago, que por coincidência tem agora o meu nome. Talvez daí o meu interesse nesta história, pois doutro modo não perdia tempo a ler sobre gente tão pobre de espírito, tão fingida, tão mesquinha. É que para grande escândalo desta família tão pudica, (a fingir, é claro), acusaram-me de ter tido um caso com Dido, não fazendo a mínima ideia, (nem podiam fazer, claro, ignorantes como são), de que nunca me chamei Eneias nem tão pouco vivi alguma vez no Norte de África.
A verdade, tenho que a aceitar com pena, é que quem eu mais gostava que lesse isto, não a vai ler. Não só no meu blog. Não lê, simplesmente, por formação, por incapacidade, já que ler não é só saber juntar letras, mas saber o que elas querem dizer quando se juntam. E eles não sabem. Coisas de família. Já na casa paterna não se costumava ler, não havia livros, fingiam, também aí fingiam, ser uma casa monástica e medieval, e cheia de valores e de princípios. Mas... agora me lembro, que até havia lá um escritório, (não um "scriptorium" pois nele nunca nada se escreveu), com uma bela secretária, talvez Napoleão III, onde, quanto muito se terá escrito alguma receita - havia um médico na família - , (que bem teria querido ser Celso, o célebre médico do século de Augusto, e a quem até chamaram de Cícero da Medicina, mas a mulher, por ciúmes, e que não eram a fingir, nunca deixou abrir consultório), ou algum rol de compras, ( havia sempre muita gente à mesa) ou mesmo se terá assinado algum contrato de venda de cortiça ou de compra de algum prédio, (eram proprietários). Que eu saiba, mais nada, absolutamente mais nada. Havia também uma estante com livros. Encadernações bonitas e gravações a ouro. Mas o que pasmava, é que os livros eram falsos, quase todos a fingir. Era isso, de madeira a fingir carneira. Ninguém os tinha escrito, apenas um carpinteiro habilidoso os tinha feito. A fingir. Por isso, por trás das bonitas lombadas não havia páginas nenhumas para ler, nem sequer de madeira. E começavam ali, para mim, os "sepulcros caiados" de que fala um Livro de que, pensava eu, tanto gostavam de ler lá por casa, antes das refeições. Dum lado dessa estante a fingir, estava aberta uma caixa com duas pistolas de duelo, do século XIX, como paradigma da falta de diálogo que por lá sempre houve, pois, com aquelas pistolas ou se matava ou se morria. Não havia lugar para pontos intermédios, troca de opiniões, pois quem ousasse ter alguma ideia ou opinião diferente, era simplesmente proscrito. E pelo contrário, tudo era irrelevante, como se para eles alguma coisa pudesse ser relevante a não ser fingir. Só fachada. Por trás duma dessas falsas prateleiras com os tais livros a fingir, podia abrir-se uma portinhola e aparecia um bar, que não era a fingir, ( apenas para provar que há sempre excepções à regra), com copos, saca-rolhas (não confundir com sacabuxas, o nome antigo dos trombones, instrumento que até pode parecer estar a ser agora usado por mim) e algumas garrafas de bebidas espirituosas. Essas penso que tinham alguma coisa lá dentro. Umas. Outras também eram a fingir! E lembrei-me de Gomes Leal e do seu magnífico poema "A Senhora Duquesa de Brabante", e de quando o filho (disforme, malquisto, horroroso!) lhe morre e de quem ninguém teve pena. Mas nesta história até tive pena. Apenas pena de não ter sentido pena nenhuma. Nem "saudades, de saudades já não ter", como numa letra de um fado. É que nem nas vascas da morte a matriarca pediu que chamassem a Filha e os Netos que tinha abandonado há dois anos, ( nem que fosse a fingir) para com eles ter uma palavra de reconciliação. Felizmente é que na verdade e não a fingir, foram todos vê-la ao hospital dois dias antes.
Depois vieram as costumadas exéquias. Na Igreja, numa essa barroca folheada a ouro, (também a fingir, com certeza) foi colocado o caixão ou talvez apenas um cenotáfio (há quem finja tão completamente . . .) E houve Missa cantada, com Homilia e Leituras, umas Sagradas e outras profanas, com coisas bonitas, concordo, mas outras que pareciam ser para uma outra ocasião qualquer, talvez para serem escritas ou lidas num dos tais livros a fingir que só tinham lombada, numa estante a fingir, de uma casa a fingir de uma família a fingir. Mas contaram-me muito mais coisas, sei muito mais coisas, mas aí fui eu quem fingiu não perceber.
Uma mulher já entrada em anos, mirífica e mirificada na sua função de Ministro da Comunhão, deu-me o Senhor, "o Corpo de Deus", disse, e eu, Amém, num assim seja de aceitação de O receber das mãos de alguém que vive de relações cortadas com uma data de gente da sua parentela incluindo inocentes criancinhas. Mas dela nem um sorriso, um toque cúmplice na minha mão que recebia a Partícula Consagrada como fazem tantas vezes os padres quando reconhecem amigos e se regozijam de ali os ver. Mas nada! E na minha alegria de O receber, fiquei triste pela minha Mulher e pelos meus Filhos, votados ao ostracismo sem saberem porquê, espantados com tanta maldade gratuita. Nenhum deles se chama Ovídio, mas esse, mesmo assim sabia porque é que Augusto o tinha desterrado para Tomes, nos confins do Império. Ovídio tinha-o traído com a mulher dele. Foi essa a razão, embora questionável, pois se a Imperatriz não foi forçada a fazer o que fez, mas pelo contrário se sentiu feliz nos braços do poeta, e com ele manteve uma longa amizade, então deveriam ter ido os dois, continuar a viver a sua concupiscência, lá para o país dos Getas.
Tudo isto seria de fazer rir o mais sisudo, se não fosse trágico. E eu não sou tragígrafo. De qualquer maneira ontem foi, a "anagnórises", de uma tragédia que ainda se acreditava estar na "peripécia". Como me enganei! Como tanta gente continua a viver enganada! Julga-se puderem ter escrito a "Arte de Amar", mas não lhes faltou inspiração para escreverem uma "Arte de Fingir", ou de rescreverem a "Arte de Furtar", já que souberam roubar a confiança que neles tanta gente tinha posto. Mas esse interessante livro já foi escrito no século XVII.
Mas na boa tradição portuguesa tem mesmo de ser para rir, como por cá se faz desde as "Cantigas de Escárnio e Maldizer" (embora elas andassem sempre de braço dado com as "Cantigas de Amigo" e as "Cantigas de Amor"), passando mais tarde pelo extraordinário Gil Vicente, com os seus autos tão sarcásticos, e mais recentemente por Nicolau Tolentino ou mesmo por Barbosa du Bocage.
E ao lembrar-me de Bocage apeteceu-me transcrever para aqui um pequeno poema que já escrevi há uns bons tempos:
"Quero enlouquecer
De névoas e de sonhos.
Quero partir para fins
De que nunca soube,
Nem saberei os princípios.
Quero viver vidas de outras vidas,
E "ser tudo de todas as maneiras",
Por estes lugares perdidos.
Onde ninguém é ninguém
Quando é esquecido
Pela própria Mãe.
Mas isto assim
Não é mundo, é imundo,
Onde mais amo as diferenças
Feitas das coisas primeiras.
"E já Bocage não sou",
Nem nunca fui.
Mas como ele "desfeito em vento"
Nesse soneto escrito na agonia
Ando de ruptura em ruptura,
A suspirar, isso sim,
"Pela paz da sepultura".

É claro que não vou ser lido por quem eu mais gostava que me lesse, porque, como já disse, não leem nada, a não ser, talvez, (procuro dar sempre o benefício da dúvida), jornais como "A Bola" ou o "Record" ou talvez alguma de mexericos sociais onde aprendem algumas torpezas que ainda não conheçam, o que é difícil. Mas tudo isto não pretende ser mais do que uma reflexão, pois doutro modo era dar a esta questão demasiada importância, e ela só tem, quanto muito, a importância deste pequeno e paupérrimo panegírico à mediocridade e ao farisaísmo hipócrita e até a um certo idiota-cretinismo, que pelos vistos afecta muita gente naquela família, talvez por hipotiroidismo ou falta de iodo. Coisas hereditárias. Afinal, e vendo bem, não estou sequer a pensar em pessoas, mas apenas em falácias, já que ainda por cima são muitos e daí o ruído parecer ser maior. Mas é só ruído, um ruído feito de silêncios e de coisas escondidas.
Felizmente tenho um Amor muito grande pela minha Mulher, pelos meus Filhos e pelos meus Netos que tanto adoro e alguns Amigos por quem tenho também um grande amor e ternura (o que sempre lhes fez imensa confusão) e que sempre estiveram ao nosso lado neste dia onde mais uma peça foi representada no palco da vida. Não sei quem me contou esta história mas penso que até sou capaz de o conhecer".

Foi meu professor

Edgar Morin a certa altura intitulou-se "contrabandista de saberes". Também eu hoje me sinto a fazer contrabando daquilo que vou sabendo, para passar aos outros o que penso ter para lhes dar. Não me importo de ir por caminhos de pé posto, atravessar a vau as ribeiras do desencontro, andar perdido pelas serras raianas, pedregosas e onde os espinhos me rasgam a carne, sem saber se a estreiteza do caminho está entre as rochas e penedos ou nos abismos que às vezes me vão ladeando, sempre com medo de morrer sem sequer ter ainda nascido. Mas insisto sempre em levar a minha carga aonde penso que ela esteja a fazer falta. Tenho tido pelo caminho imensos percalços e não foram poucas as vezes em que saí humilhado e ofendido, batido, não só pelos ventos agrestes mas pelas mãos dos homens, roubado, não por salteadores vulgares que de mim querem a bolsa, mas por muitos outros que gostavam de me ver só, caído no buraco fundo da verdade. E volto tantas vezes aonde fracassei, quantas vezes fujo dos lugares de onde saí vitorioso. As trevas não me assustam, porque tenho sempre comigo as estrelas que nunca me perguntam para onde vou e o que levo comigo. E são a vela que acendo não tendo assim que amaldiçoar a escuridão.
Edgar Morin foi meu professor numa pós graduação já aqui há um bom par de anos. Entre os muitos livros que li dele - escreveu umas dezenas - lembro-me agora de "Os meus demónios"
que sempre me faz pensar nos meus, com quem aliás não me dou tão mal como isso, porque também não posso estar sempre a rezar aos anjos bons. Em tudo cada vez mais penso que tenho é que conseguir a harmonia dos contrários, e é por isso que também não me importo de subir ao cimo das montanhas, porque de lá de cima consigo distanciar-me tanto do bem como do mal.

ESQUECER

E beijei-te com a avidez de quem tem fome desde há muitos sonhos. E senti que o teu olhar me perguntava se era tudo verdade. Foi quando vi que uma lágrima te corria pela cara e me gritava angústias. E até me molhou o peito, enquanto as minhas mãos se passeavam pelo teu sentir.
Voltei a beijar-te, os gestos e o sorriso, e com as minhas mãos vazias, esculpi na pedra o teu olhar, e esculpi também depois o travo com que fiquei, ao saborear em ti tudo o que o meu sonho um dia me tinha contado. E sofri, sofri para depois te poder esquecer.
E resolvi fugir de ti e de todos, e exilar-me nos confins do mundo levando comigo debaixo do braço um livro de Vintila Horia: "Deus Nasceu no Exílio".
Também Augusto exilou Virgílio para os confins do Império Romano do Oriente, para Tomes, o país dos Getas. Só que ele, mesmo assim tinha um cão a que pôs, como vingança, o nome de Augusto.
Mas eu não quero ter cão nenhum, e se tivesse, nunca lhe poria o teu nome. Quero esquecer-te, mas sobretudo, quero esquecer-me. De mim. Única forma de me libertar, e ficar preso.
Foi quando senti que Zamólxis, ao ver a minha fé, me recebia e apertava ao peito.


Ao ler "As Confissões de um Homem Céptico", de Lucrécio, senti que o chão que pisava, partia sem mim, para longe, muito longe, até o perder de vista.
Foi nessa altura que te vi e me vi relectido nos teus olhos azuis. E fui mar e horizonte.
Sinto-me órfão. Da vida. Sinto-me órfão de tudo porque só me sinto tudo o que não tenho nem o que não sou. E se ainda me sinto alguma coisa, é porque há em mim uma réstia de esperança que um dia, o dia me cubra com a luz do dia e me aqueça num beijo.
É isso, sinto-me órfão de mim, porque em boa verdade há muito tempo que já morri.

Jorge Luís Borges

Dizem que todos os caminhos vão dar a Roma. Não sei bem, e se calhar não é bem assim. Os meus caminhos, por exemplo. Alguns vão com certeza dar a Roma e levam-me a ver as esculturas de Bernini ou os quadros de Caravaggio mas os espelhos de Borges confundem-me. Sinto-me a replicar uma vida que não é nem nunca foi a minha, e acabo por me perder nas florestas de enganos onde sempre pensei que algum dia me ia fazer árvore, e enfiar as minhas raízes até ao outro lado do mundo.

Um dia destes

Um dia destes morri, mas foi de mim que me senti órfão. E ao sentir-me órfão senti-me tudo, senti-me tudo o que não tenho. Mas vou sendo assim, nesta miséria dourada com que me visto e me dispo conforme olho ao meu redor e procuro perceber para onde está o vento.
E os meus dedos adormeceram ao piano, naquele piano em que as teclas são pontos de mim, são sons que os meus olhos continuam a tocar. Depois sinto o silêncio, e o preto e o branco das teclas sussurram-me fantasias, nocturnos e até sinfonias que não toco porque não sei ler as pautas.
Mas um dia destes ouvi uma criança a chorar. Sentia-se perdida, como eu, e então fomos passear juntos ao longo do rio, e ao fundo, ela encontrou os pais. Espantoso!

AMIZADES

Foi um grande Amigo

À medida que os anos passam, dou comigo a pensar noutros tempos "que já lá vão", noutras pessoas, noutras paisagens, em coisas que senti, fui sentindo e já não sinto. E hoje resolvi pôr-me aqui a escrever sobre recordações, sim, recordações e não lembranças, porque é com o coração que as recordo.
Tinha eu uns 16 anos. Nas festas de Paço d'Arcos, onde eu vivia e vivi até me casar, surgiu a ideia de se representar uma peça de que já não me lembro do nome. O Padre Luigi Nesi, italiano, era um missionário Comboniano grande entusiasta de teatro que pediu a um rapaz nosso colega no Liceu de Oeiras, o  Luís Joyce Moniz, escrevinhador já naquela altura mas que até veio a ganhar um prémio de teatro mais tarde, para organizaer e ensaiar o grupo.
Depois apareceu o Luis Benito Garcia, muito mais velho do que nós, mas entusiasta ferrenho, por tudo, mas sobretudo pela vida. Tornámo-nos amigos, apesar da grande diferença de idades, e foi uma pessoa extraordinária que me ensinou muito, me deu muito.
Hoje guardo dele uma recordação terna, e um livro, o único que publicou e só para dar aos amigos os Ditirambos, numa edição bilingue de português e castelhano. Era oriundo do vale de Salazar, em Espanha, e apesar de rico, era quase um sem abrigo. Só escrevia poesia e a mulher, norueguesa, pintava. E faziam filhos. Quando morreu deixou dez filhos e um vazio muito grande dentro de mim, porque foi na verdade um grande amigo.

Liberdade

O Arbeit Macht Frei, "o trabalho liberta" que estava escrito na portão de entrada do campo de concentração nazi de Auschwitz, passou a ser Stadt Luft Macht Frei, ou seja, "o ar da cidade liberta as pessoas", o que  obviamente não sentia acontecer-me. Preferi o campo, o verde, o vento a escrever sinfonias pelos ramos das árvores, e o cheiro a terra depois de ter chovido, e o cheiro a seco na canícula, e os pôr de sol ao fundo das campinas, e os luares que não precisavam de ser de Agosto para serem luares, rodeado de toda uma imensa corte de estrelas.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Há meses

Há meses que não escrevo nada neste meu blog de que tanto gosto. Mas tenho andado a pensar e de hoje não passa acrescentar nele mais qualquer coisa.

E lembrei-me de que o meu Pai me ofereceu "As Canções" de António Botto, quando eu fiz 10 ou 11 anos, disso é que já não me lembro bem e que para além da muita poesia que releio sempre, António Botto é sem dúvida quem mais releio. Tenho para mim que é do melhor que se tem escrito em Portugal, não só a poesia, como os contos e as cartas. Não é de certeza por acaso que o muito mais celebrado Fernando Pessoa se lhe refere em cartas que lhe escreveu pelo "meu mestre". Dentro da poesia, os sonetos são tão extraordinários, tanto os dedicados à "mulher morena" como os que dedica ao "jovem loiro", que os próprios ingleses, sempre tão ciosos do que é seu, o comparam a Shakespeare.
Mas hoje, não sei porquê, estou a pensar mais nas "cartas que me foram devolvidas", porque também estes textos/apontamentos, que por aqui vou pondo e começaram por ser uma tentativa da tradição diarística, que afinal não cumpro, mas que acabam por ser, embora às vezes com grandes espaços no tempo, uma longa e interminável carta que não me canso de escrever e que penso nunca acabarei enquanto for vivo, uma carta que me escrevo, que a mim devolvo sempre, e que no fundo não deixam de ser pequenos gritos calados de uma maneira muito minha, de me revoltar contra a ignorância e a teimosa pequenez das pessoas que continuam a não dizer o que pensam, o que sentem ou que na realidade mais crua, afinal são. Uns pobres "palhaços articulados", sempre com a cara enfarinhada para melhor esconderem por trás dessa máscara que faz rir os outros, as lágrimas que por trás delas lhes escorrem secas pela cara abaixo e em que ninguém vê nem adivinha as suas "humanas desventuras".
Esta carta que já escrevo há anos é feita de muitas cartas que só não me são devolvidas, porque sou eu próprio quem mas devolve até antes mesmo, de as mandar. E não digo a ninguém que as escrevo. Que adivinhem, se quiserem.