sábado, 24 de abril de 2010

Prisão

Deito para trás das costas os meus cansaços, e sinto-me livre, numa liberdade imensa para tudo e em tudo, feito do nada e do tudo que para mim faz sentido. E penso que penso e até penso que sou, quem penso.
Porque penso o que quero, sinto o que quero, sou como quero, apesar desta prisão de que me fiz e que é o mais autêntico dos absurdos, eu sei! Mas é uma prisão com as paredes forradas a oiro e a pedrarias, o chão é todo em lápis lazuli, o tecto é feito de sonhos, e, embora o espaço nunca para mim fosse grande - mas que, no entanto, sempre foi suficiente para nele, todos os dias, dar "a volta ao dia em oitenta mundos" - tem uma porta larga que dá para um páteo de onde posso olhar o céu, sempre que quero, sem nunca o conseguir ver só do tamanho que ele tem por cima da minha cabeça, porque o vejo sempre do tamanho do sonho, que te sonha a ti, nesta imensidão de te querer, e nunca saber afinal, quem és. Quem sou!
E junto-me sempre que me apetece, ao coro da prisão, e canto com eles, à capela, coisas que um polaco, Krzysztof Penderecki compôs para mim numa altura em que viveu no Estoril e era meu vizinho. Estava-se em plena Segunda Guerra Mundial, e eu já era bastante velho nesse tempo, se é que já não tinha morrido. Não me consigo lembrar. Eu tenho morrido tantas vezes, por ti, meu amor, por amor! Tenho morrido tantas vezes...
Eu próprio compunha às vezes uns "lieder", a imitar Schubert, ou Wolf sempre que me sentia um "Pássaro Azul" e o carcereiro me deixava sair para jantar numa tasca que havia mesmo em frente da prisão, - ele confiava tanto em mim que tive que o trair um dia, para lhe provar como era livre - e eu, como não tinha dinheiro, pagava sempre o que comia nesses jantares, com um "lied", que no entanto nunca era em alemão mas sempre em línguas que inventava na altura, conforme o meu estado de espírito.
Depois ia passear esta minha alma sempre dividida entre a beleza e a beleza e quando me encontrava, sorria-me, cumprimentava-me, convencido que me conhecia de qualquer lado. Mas eu era sempre o outro, e por timidez ou cobardia, acabei por nunca me conhecer. Ou ao outro, não sei bem. No fundo sou sempre esta mistura de mim com o outro, procurando nunca ser alguém.
Mas sou livre, a verdade é que sou livre, e de tal maneira livre, que me torno sempre num escravo desta minha liberdade. É quando passo mais facilmente desapercebido.
Foi quando te sorri mais uma vez, sempre convencido que te conhecia só porque te sonhava e queria. E eu eras tu, e tu, eras sempre o outro. De mim, só me restava a mim. De ti, sempre me ficou este a sonhar-te sem ter fim.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Hoje

Ainda a noite, maiêutica de mim, deixava o dia rasgar-lhe a carne, para do útero fecundado pela minha insónia, nascer o dia, já eu me punha também à espera de Godot. Triste ideia esta que me fazia sentir que não conseguia perceber se estava à espera de Deus, se da minha própria condição. A humana. Mas não, "eu sou eu e a minha circunstância" como dizia o Ortega y Gasset. Mais nada. E por isso esperei em vão, nesse deserto de mim, se calhar à tua espera, sem saber sequer quem és, afinal. Se Deus, ou se simplesmente "o outro". Mas esperei, embora não soubesse quem era esse Godot. E senti-me mais só que a solidão e chorei lágrimas que me correram por mim adentro, para não terem por onde poder sair. Foi quando me refugiei num canto de mim e que de propósito mantenho escondido e como que abandonado, sem préstimo nem serventia e que só eu conheço. Mais ninguém. E já não estava tão só: tinha o meu canto. E o meu canto era e não era eu.
Foi de lá que então parti à procura de Hamlet para saber se a questão estava de facto em eu ser ou não ser eu. Mas ele já se tinha suicidado, e já fedia, como o reino da Dinamarca e como o meu. E fui Ofélia enrrudilhada nos meus próprios pensamentos. E à medida que o Sol se levantava e se começavam a ouvir os vagidos do dia a nascer, eu voltei a descer aos meus infernos interiores e adormeci a pensar em ti, meu amor.