sábado, 5 de fevereiro de 2011

PORQUE SÓ OIÇO O TEU OLHAR

Não pertenço a nenhum grupo, a nenhum partido, a nenhum club, a nenhuma corrente filosófica, literária, estética. Não pertenço a nada nem a ninguém, a não ser aos que amo. E são poucos, tão poucos, alguns. Uns que escolhi, outros que a vida me foi emprestando. Por isso, quanto muito, sou alguém diluído em alguém, que na realidade é um grupo restricto, um grupo que sou sempre eu e o outro. Que sou sempre eu e tu, minha adorada, meu doce olhar.
No que escrevo há de tudo, e a tudo vou buscar o que vou sentindo e vou escrevendo, neste passar pela vida, vivendo. Não sou sequer um ser, sou um sendo, um permanente gerúndio de mim, um sem fim na busca de me ser, a pouco e pouco, em ti. Não, nada me faz sentido se tu não fores o que vou sendo, o que vou tendo neste amor que, um pelo outro, temos tido.
Não perpassam por mim correntes de ar, a não ser o bafo quente de te sentir, mas há sim, em mim, dentro de mim, como que uma corrente marítima, de águas muito fundas, mas que apenas passam pelos mindanaus do teu olhar, ou das tuas mãos sempre feitas de luz, de calor, ou da pureza dos teus gestos, onde me afogo até me faltar o ar.
Nem sei, às vezes, se Deus existe. Sei, isso sei, que me sinto filho Dele e O amo, mesmo sem o conhecer, no mesmo mistério de te ter um dia no encontro em que por fim me possas ser.
Também tenho a minha Arca Perdida, e porque sei que anda perdida algures dentro de mim, nestes labirintos de que me faço e me desfaço, enquanto a procuro sem perceber que a carrego, arrasto, empurro, sempre para dentro de um não sei, que és tu, nesse me seres em mim, Arca da Aliança, Torre de Marfim.
E o meu corpo é uma permanente e possível actualização da minha alma, é uma barcaça em que me deixo levar por este rio abaixo que é sentir-te, e ter-te dentro de mim envolvida neste sonho que nos abraça. Uma "barcarola" que tocamos a quatro mãos no piano da nossa vida.
Não, eu não pertenço a nenhuma corrente literária, nem musical, nem da pintura em que a cores fortes pinto sempre de azul o teu olhar. Apenas sou a corrente que me amarra a ti, bóia onde há quase quarenta anos fundeei o meu navio, e donde parto e partimos, sempre os dois, por mares que só nós dois é que sabemos serem sempre o teu olhar.
É por isso que ao lêr Cortázar vou dando também eu, a volta ao dia em oitenta mundos, e em que só um é o meu, o de nós dois, de mais ninguém.
E tudo isto me grita tão alto, que nem consigo ouvir, o que me dizes, ao ouvido, porque só consigo ouvir o teu olhar.