domingo, 29 de novembro de 2009

O nefelibata

Encontrei-o um dia, há já muitos anos, este nefelibata, que como o nome indica, é, na sua etimologia grega, alguém que anda nas nuvens. E ele andava sempre, acreditem, mesmo sem nunca ter lido Rabelais. Tornámos-nos íntimos, amigos inseparáveis e um dia lá fui eu com ele pelas nuvens da nossa insatisfação, construir nelas castelos, com muito cuidado e ternura, castelos amuralhados a ouro, com ameias e merlões em pedras preciosas, o caminho da ronda tapetado a prata e feito de paz e de silêncio e em que na torre de menagem se podia ouvir sempre uma música suavíssima, em homenagem a Eros, o deus do Amor.
Mas havia sempre quem lhe quisesse assaltar os castelos que construía, e os portões não resistiam aos aríetes com pontas de ferro bruto, nem às catapultas que lançavam grandes bolas de pez a arder e que incendiavam tudo, ou mesmo alguém que descobria a porta da traição, como sempre escondida e envolta em silvas e cardos, e entrava pela calada da noite e ia apunhalar o nefelibata pelas costas, enquanto ele dormia ou distraidamente sonhava. E o castelo ruía e caia, obrigando-o, só nessa altura, a pôr os pés no chão. Mas, oh! inocência, ficava sempre perdido no meio de um dédalo qualquer, numa ilha esquecida no meio de um mar sempre em fúria, tendo apenas por companhia o seu minotauro interior, que o ajudava a encontrar colmeias de onde tirava um mel amargo de que se alimentava. Mas por mais que procurasse por onde sair, acabava sempre num beco sem saída. Então ia até às colmeias ( sempre se tinha dado bem com Aristeu, o rei das abelhas) e pedia-lhes um pouco de cera, para fazer umas asas como tinha aprendido com Ícaro, e lá ia esvoaçando, inseguro e cada vez mais cansado, por cima do labirinto até começar a sobrevoar o mar encapelado da vida. Mas o Sol que tantas vezes lhe aquecia a alma, e de que tanto gostava, derretia-lhe as asas e ele caia na agua que muitas vezes se confundia com as lágrimas que chorava enquanto tentava encontrar terra firme, nadando com o braço direito, porque o esquerdo nunca o tirava do peito, como que a agarrar o coração, não fosse ele cair e perder-se nas profundezas e ele ficar incapaz de sentir. E chegando por fim a um rochedo na costa, deitava-se a descansar, sem dizer nada, simplesmente a sentir, na sua perplexidade de continuar vivo, apesar de tanto sofrimento. E decantava a dor, como quem decanta um vinho velho e de boa colheita para o beber só com o melhor amigo. E o desespero tornava-se puro enquanto o olhar se lhe ia turvando do vinho e das lágrimas que lhe ensopavam a alma.
E voltava a encontrar outras nuvens, onde julgava mais uma vez poder construir o seu castelo ideal. Mas os tempos mudavam e as nuvens desfaziam-se e só então voltava a pôr os pés na terra, ao cair delas abaixo.
Mas o fim estava próximo, sentia a vida a querer-lhe sair pelo peito, cansado e dorido, cansado de tanto lutar e até de sonhar. Queria tudo e não queria nada, e mesmo quando uma vez estava sentado no degrau de uma escada a apanhar sol, e lhe apareceu Alexandre a dizer-lhe que lhe pedisse o que quisesse, que lho dava, o nefelibata lembrou-se do velho filósofo grego e só lhe pediu que saísse da frente para não lhe tapar o Sol.
Já não tinha forças para continuar a pegar nas pedras das ruínas dos castelos que tinha construído, para se pôr a construir mais castelo nenhum. Um dia confidenciou-me que já só lutava por se esquecer de todos os que o tinham atraiçoado ao longo da vida, com a sua falsidade, ignorância, medo, preconceitos, fantasmas, egoísmos e desprendimentos, como se desprendiam as pedras que, feito Sísifo, tanto lhe tinha custado a levar lá para cima.
E o nefelibata chorava a sua desdita, enquanto continuava a pensar que apesar de já ter perdido muito, o que lhe restava ainda era imenso. E assim ia lendo a vida, repartido por emoções e sensações que não controlava, a não ser quando sonhava sentado nas nuvens, onde não lhe chegava o cheiro fétido do mundo, e a aragem lhe enchia os pulmões de novas esperanças. E assim, o nefelibata, farto das mais variadas contradições, vazio e ao mesmo tempo cheio de um inesgotável Amor, já não sabia a quem o dar na sua idade a esgotar-se.
E recordava as amizades com que tinha enchido os seus castelos, desde Diotima, a mulher de Mantineia - a terra onde morreu Epaminondas ao derrotar os espartanos - , e que lhe ensinou, como a Sócrates, em que consistia a essência do amor, a Celso, o célebre médico romano da era de Augusto e a quem chamaram o Cícero da Medicina, passando por Rumi, o poeta persa do século XIII, que tanto lhe ensinou a "vender tudo e a comprar espanto".
Dava sempre nomes aos seus castelos, nomes das músicas que ao longo dos anos lhe tinham enchido o peito de sons e melodias.
Quando mais novo, Stevie Wonder com o "You are the Sunshine of my Life", Serge Reggiani com o "Le Premier Amour du Monde" ou a "Lisztomania" do Roger Daltrey e depois, mais tarde, o "Adagio" de Tomaso de Albinoni, o Concerto nº 3 para violino de Mozart, ou ainda o "Prelúdio" para violoncelo de Bach e mais recentemente o "Concertino para guitarra e orquestra" de Bacarisse ou a ópera, durante tanto tempo proibida, de Prokoffief, "A História de um Verdadeiro Homem".
Das últimas vezes que o vi, o nefelibata lia compulsivamente " O conceito de Angústia" e "O Desespero Humano" de Kierkgaard, "Do Sentimento Trágico da Vida" do Unamuno, "O Homem sem Qualidades" de Musil ou "Um Homem Liquidado" do Papini.
Agora prepara-se para ir viver o resto dos seus dias num dos seus castelos abandonados, em ruínas, sozinho, rodeado das suas recordações e envolto numa obsidiante solidão.

sábado, 28 de novembro de 2009

A reflectir

Faço da vida uma reflexão permanente sobre a Vida. Sobre mim e a minha relação com o mundo que me rodeia. Quem amo e como amo, nas suas múltiplas e inesgotáveis formas. Em que conta me tenho e para onde posso crescer e ser mais. De ter a capacidade de ser sempre outro e continuar a ser sempre eu. Ser Vida e não ser.
Sei e sinto que todo o presente se transforma rapidamente em passado, já que o presente não passa de um ponto perdido no tempo. A questão é que gosto de gostar, e gosto de muitas coisas, e gosto delas de muitas maneiras. Desdobro-me numa espécie de heteronimia, não só minha mas de tudo em que me sou. E admiro-me quando entro em conflito com tudo isso, porque à partida duas coisas boas não podem ser contraditórias. Mas às vezes são! É um mistério, como é também sempre um mistério esta vida por que todos, de uma maneira ou doutra, passamos. E eu passo. Toda esta complexidade é o meu modo de pensar e de ser, onde me encontro e encontro riquezas éticas, estéticas, literárias, artísticas e sobretudo de uma afectividade que não se esgota, mas que me esgota. Continuo a ser um aventureiro do espírito, um viajante da vida e dos comportamentos de encontro e de desencontro por que nela vou passando. E as minhas mãos descrevem numa mímica muito minha, o que tenho a dizer da alma, e os meus pés escrevem com as passadas que dão nos areais do meu descontentamento, os meus sentimentos. E todo o meu corpo dança em ritmos e coreografias às vezes alucinantes, este encaminhar-me para a lucidez, para a liberdade de ser eu. E não ser. Alfa e ómega das minhas reflexões. O alfa e o ómega que me constrói e destrói, de que me faço e desfaço, de que me sou e não sou.

olhar-te

Olhar-te foi como que beber de ti qualquer coisa, um qualquer elixir da longa vida, ou de uma morte ternamente e eternamente adiada.
Olhar-te foi uma intoxicação, foi como se tivesse bebido muito álcool ou mastigado algum daqueles cogumelos mexicanos que causam alucinações.
Olhar-te foi intoxicar-me de espanto, de belo, de azul. Foi a embriagues por xadrez, como no célebre conto de Stefan Zweig, que se chama "O Jogador de Xadrez".
E também como ele, pensei que quanto mais um indivíduo se limita, tanto mais se aproxima do infinito, numa outra forma de olhar para a relação entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, e dizer como Shakespeare " oh! quem me dera ser do tamanho do universo e caber numa casca de noz!"
E caber nesse olhar-te, e ser tudo nesse olhar-te e no olhar que me retribuis.

domingo, 22 de novembro de 2009

ERA UMA VEZ

Era uma vez um rapaz, sonhador e idealista. Lia muito e era apaixonado por tudo o que fosse bom e bonito. Um esteta, em suma, porque importante para ele não era só o que via, mas sobretudo o que sentia. Já Almeida Garrett dizia que "beleza não é formosura; beleza é o resultado das graças". E o belo, no que tem de mais profundo, desde sempre tinha despertado nele os sentimentos mais diversos. Sempre tinha tido amigos e amigas a quem se entregava de corpo e alma. Tudo vivia segundo o kalos kay agathos (o belo e o bom da velha Grécia). Mas nem sempre foi compreendido e aceite. Por outro lado sempre teve amigos e amigas que o acompanharam pelo resto da vida.
E aquele rapaz um dia, e mais uma vez, apaixonou-se. E dessa vez foi para valer. Ainda por cima ela tinha muitos irmãos e irmãs, o que para ele foi uma festa, um deslumbramento e um encantamento, já que só tinha um irmão e isso o fazia sentir-se muito só.
Casou, e ao casar casou também com o resto da família, que achou ser um prolongamento da sua. Por fim podia ter muitos irmãos. Amou-os muito, mas se calhar como dizia uma actriz de cinema daquele tempo e que ele gosta sempre de citar, o problema nunca foi amar muito, foi o nem sempre saber amar sabiamente. Não contava, - e se calhar ainda hoje não aprendeu completamente a lição - , que as pessoas às vezes não são nada como ele, sonhadoras e idealistas. Pelo contrário, são frias, egoístas, calculistas. E ele quando se apercebeu que a vida não era como ele a sonhava, viu-se maltratado, desprezado, vilipendiado por quem menos esperava. Restava-lhe, - e o que sempre foi muito - , o grande Amor que ao longo dos anos foi construindo com a Mulher, feito de aceitação, entendimento, respeito pelas diferenças, mesmo por aquelas aparentemente mais difíceis de ultrapassar. Sentiram-se muitas vezes sozinhos, isto é, caiam muitas vezes na tentação de pensar isso, mas viam sempre, por uma razão ou por outra, que Deus nunca os tinha abandonado. Assim uma espécie dos conhecidíssimos "passos na areia". Uma das suas características ou defeitos, entre muitos, era a impulsividade, e ao sentir-se traído chegou a sentir uma grande raiva, a pensar em torpes vinganças, mas o Amor vence montanhas, em especial o Amor entre eles os dois. Ela muito mais serena, muito mais sensata, foi sempre capaz de o pacificar e de o fazer pensar que perdoar quer dizer "dar duas vezes" e ele, em boa verdade, só se tinha dado sempre uma vez. E ele aceitou. Por Amor. E achou que valia a pena, porque importante, importante era o Amor que viviam um com o outro e um no outro, já rodeados de Filhos e Netos. E o rapaz, que de rapaz já não tinha nada, aceitou ter perdido uma família ao ver melhor que Deus o tinha compensado com a sua própria Família, construída pelos dois, ultrapassando muitas vezes mil e um obstáculos, e quase tão grande como a outra. E em Amor, sem sombra de dúvidas, muito maior. Não sei se ele vive assim tão em paz como gostava. Mas e o que é a paz? Ausência de guerra ou a sua procura?
Meu amor, os teus olhos azuis-agua, lavam todas estas manchas que tantas vezes insistem em me sujar o coração. Não, não me vingo. Basta-me o teu Amor.

sábado, 21 de novembro de 2009

A Pintora

Aqui há tempos o meu Amigo Gonçalo Leandro pediu-me para escrever um texto para a apresentação de uma pintora que ia expor na galeria dele. Escrevi o texto mas nunca mais o tinha visto. Agora encontrei-o e antes que se perca de vez vou transcrevê-lo para aqui, enquanto ouço o Concertino para guitarra e orquestra de Bacarisse, peça que aliás eu e o meu Amigo Nuno Bandeira elegemos para hino da nossa Amizade. E o texto é este:
Vera Esquível consegue dizer a pintura e o desenho, criando um alfabeto de imagens e símbolos, mas também de palavras, muitas vezes invertidas, desconstruidas, onde pudemos ler a angústia perante o corpo interdito.
Esse "locus infectos" da tradição, e a "virgo non intacta" que é, nestes trabalhos feito de ansiedades e sonhos perdidos, feito de sonhos por conseguir, feito do que por fim alcançam: o traço que cria, que imagina e simboliza, que sente e faz sentir uma alma que procura.
Depois vem a cor, quase sem cores, no fundamental, primordial, preto e branco, deixando o verde e o encarnado para o mais fundo de uma semiótica, que transporta em si mensagens para serem interpretadas por quem, na impossibilidade de as simbolizar, as diaboliza.
Ao definir com este alfabeto, emoções e sensações, que no fundo têm a ver com todos nós, Vera Esquível consegue transmitir uma inquietação criadora, que nos faz pensar em como ser de outras formas, formas ao nosso alcance mas de tantas maneiras reprimidas.
Alguns desenhos de Vera Esquível, transportam-me ao universo do (também mas não só como toda a gente sabe) opiómano Jean Cocteau, pois nestes desenhos encontramos a busca do corpo vivido, mesmo se dissociado ou reduzido a uma dinâmica do espaço.
Aqui o homem, ou as figuras humanas, são captadas pelo espaço, de uma maneira neurótica, em que a dinâmica "oculta do espaço", dá um sentido ao absurdo.
Vera Esquível como que ilustra alguns dos temas de "A Nova Desordem Amorosa", de Pascal Bruckner, como por exemplo, "o esquife peniano no rio do amor" ou "os corpos incertos" ou ainda "a canónica quimera do orgasmo".
Há a agressão, o perdão, a reconciliação, num jogo de linhas e palavras, de gritos e de silêncios amordaçados, do desejo fálico transformado em oração. Há um não-lugar para o erotismo feito de espaços de diálogo entre as formas.
Tal como José Gil é considerado o "filósofo da carne" ( é discípulo de Deleuze), Vera poderá ser a desenhadora da carne onde se descobrem as cicatrizes, cesuras como pausas ao fim do primeiro hemistíquio do verso alexandrino, ou a última sílaba de uma palavra que começa o pé de um verso latino ou grego.
E dou comigo a tentar encontrar uma correspondência entre o verbal e o visível, a debruçar-me sobre o fantástico na arte, sobre a arte e o erotismo e apetece-me citar Ahmade Ashai "o paraíso do gnóstico fiel é o seu próprio corpo, e o inferno do homem sem fé nem gnose é igualmente o seu próprio corpo".
Paul Klee " escutava os murmúrios que preenchem o silêncio...", Vera Esquível, preenche os espaços que desencadeiam em nós e na nossa imaginação a frase de Merleau-Ponty, " ver, é sempre ver mais do que vemos".


segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Quando me inspirei na letra de um fado

Subo, envolto nos vapores que transpiro, a caminho do alto, do não sei, do já não ser eu , mas simplesmente Ser, o Ser que me faz ser eu, a caminho da tal verdade que não existe senão no fundo de um poço sem fundo, mas em que a Fé é feita apenas de teimosia e de uma enorme crença em Ti, no além. E vejo-me a passear pelos meus "Tristes Trópicos", dividido entre Norte e Sul, dividido sempre, entre mim e eu, numa imperfeição constante de mim, e de um pensamento hesitante em ser ou não ser pensamento. Se calhar não sou mais que um jardim relvado e cheio de flores azuis, como os teus olhos, que vejo, beijo e invejo, num beijo que te dou e sei, uma vez que encontro nele o sentido imanente do gesto, da cor e de tudo aquilo que me fica sempre por te dizer, porque as palavras são pouco, "quando o silêncio é maior".

sábado, 14 de novembro de 2009

Nietzsche

Passando os olhos por um caderno onde desde há muitos anos aponto frases e pensamentos de pessoas célebres que me fizeram pensar e ter a sede de leitura que mantenho, e a verdade é que ficaram na história, não resisto a transpor para aqui um pensamento de Nietzsche, já não sei de que obra dele, mas que seguramente li há alguns 30 anos, pois nessa altura lia-o muito.
" Aos homens por quem tenho algum interesse, desejo-lhes sofrimento, desamparo, doença, maus tratos, envilecimento; quereria que não ignorassem o profundo auto desprezo, o martírio da desconfiança em si mesmos, a miséria do vencido. Não tenho nenhuma compaixão por eles, porque lhes desejo a única coisa que pode demonstrar se um homem tem ou não valor: o ser constante. "
E automaticamente me lembro do inesquecível "If "o poema de Rudyard Kipling que gerações continuam a ler e a não conseguir o "então serás um Homem" com que acaba . É na verdade uma tarefa árdua, isto de se ser Homem. Os chineses é que têm razão com o aforismo que diz : "ser homem é fácil, basta nascer homem, ser um Homem é muito mais difícil".

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

História

Tudo é história. E faz-se história com tudo, de tudo. Por isso sempre gostei imenso de história, era a disciplina em que tinha sempre as melhores notas, porque sempre achei que é de história que tudo se faz e se sente, se partilha, se ama ou se odeia, e que é através dela que vão fluindo os sentimentos mais contraditórios, os ditames mais díspares, e que é da história que se tiram
as mais delirantes, intrigantes e fantásticas conclusões e ensinamentos.
Sempre gostei de História, da Universal, da de Portugal, e até da minha própria história gostei sempre imenso. Porque eu também tenho a minha história, feita de amores e desamores, de afirmações e incongruências, de lutas, umas ganhas outras perdidas. Uma história onde no entanto houve sempre uma constante: o Amor. Mas como não me chamo Ovídio, nem escrevi a Arte de Amar, apesar de amar sempre muito, nem sempre soube amar sabiamente, como dizia a grande actriz do meu tempo, Ava Gardner. Mas mesmo assim fui fazendo a minha história, e assim a fui enchendo de histórias, umas boas, outras menos boas e até de histórias más. Mas se não fosse assim também nunca teria feito a minha História, nem sequer haveria História e eu apenas tinha passado pela História. Não, lá que a tenho vivido, isso tenho. Tem passado, tem presente e espero sempre ir a caminho do futuro, mesmo que tenha de cortar Nós Górdios, atravessar Rubicões, e gritar Talassa ao ver no mar a minha salvação para poder continuar a minha História. E nunca me perdi no tempo, nem nunca deixei que ele simplesmente passasse por mim, como um cometa que passa uma vez e a outra já é na eternidade. E gosto do meu passado, tantas vezes controverso, incompreendido, ucrónico. Porque o meu passado é a certeza do meu presente e a esperança no meu futuro. Sou como uma nação qualquer, que se não tem passado, não tem presente, não o é, simplesmente. Embora me vá dispersando ao longo do caminho vou estando sempre aberto ao espanto. Aliás sempre achei que era de seguir a frase de Rumi, o célebre poeta persa do século XII: " vende tudo e compra espanto". E continua a ser com espanto que a minha história se vai fazendo, com espanto que me continuo a apaixonar, com espanto que choro sempre que olho um Filho ou um Neto, que sinto a ajudarem-me a continuar a fazer História. E neste ir sendo palco e actor da História que vou fazendo vou continuando a contar histórias, sobre a História que vou sendo. Já o grande Schiller disse que "até os deuses lutam em vão contra a estupidez". Tantas vezes lutei! Tantas vezes saí derrotado, mas sou um homem de Fé e por isso, sempre que chego ao cimo de uma montanha, continuo a subir, porque, como dizia o Fernando Pessoa, "o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta". É como a História, ou esta história que aqui ponho para continuar a minha História.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Velasquez

A última vez que te vi ias a correr para apanhares o combóio. Pensei em chamar-te. E cheguei a gritar qualquer coisa. Mas e emoção foi maior e as palavras não tiveram som, tiveram apenas espaço. E como Michel Foucault também eu senti que a distância entre as palavras e a imagem de te ver a correr, era infinita.
E neste encontro/desencontro de espaços, palavras, movimento, e do meu próprio grito por gritar, fez-me lembrar-me do célebre quadro de Velasquez, "Las Meninas". E num placard com um anúncio já não sei a quê, mas onde havia várias pessoas, imaginei que uma delas era a Infanta Margarida olhada pelas "duenas", enquanto o pintor olhava como que para fora do quadro, ou para Filipe IV e para a rainha Mariana, reflectidos no espelho, dentro do quadro, enquanto a anã olhava para mim e era eu quem saia pela porta ao fundo e olhava para um cão que não estava lá, mas que eu imaginei. A verdade é que do meu olhar apenas ficou um jogo de olhares que não sei se sonhei ou se os vivi na realidade. Certo, certo, foi ter sido eu a pintar a cruz da Ordem de Santiago no gibão do artista. Perdi o combóio e perdi-te a ti para sempre, reflectida no espelho da minha ansiedade e na distância que me separou também desse quadro que nunca cheguei a acabar.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Silêncio

Fiquei a escutar o silêncio, saboreando-o como saboreio os segredos que tenho comigo mesmo. E o silêncio fez-me bem, como me costumam fazer bem os segredos que tenho guardados dentro de mim e que só vejo às vezes quando entreabro o meu peito para os espreitar. E o silêncio foi uma canção que compus ternamente para poder beijar a tua alma, e depois, ficar a meditar sobre tudo e sobre nada, numa experiência única de te sentir vida, e nisso encontrar uma benção de Deus, longe de dores, lutas, preocupações, desejos. Como um pássaro que voa, despreocupadamente, fui rasgando o espaço e os ventos, enquanto te respirava e nisso encontrava a verdade, a beleza, o bom e a unidade de que falava Aristóteles. E aprendi a encontrar estes quatro dons, em tudo à minha volta, porque à minha volta só estavas tu, meu amor,

domingo, 8 de novembro de 2009

Os teus olhos

E respirei as flores, e bebi delas o orvalho da noite, a paz de tudo o que nasce e é tudo, nesse derramar em ti todo o amor do meu ser, no ser cada vez mais amor, nessa Fé viril, de como dizia Borges, é " a consciência de que em qualquer homem está Deus". E fui tudo o que fui, e sou, e ainda hei-de ser, neste rio que corre dentro de mim, a caminho do mar que sou, mas quero inventar sempre dentro dos teus olhos azuis. Já que é em azul que me faço, e desfaço, na procura incessante de te ser em mim, num imenso e apaixonado abraço.

sábado, 7 de novembro de 2009

Desafio

Vivo num permanente desafio com o Mundo. Mas sobretudo desafio quotidianamente a Vida. Dá-me prazer. E o que ainda me dá mais prazer é, sempre que luto com ela, ter o cuidado de a deixar viver, só para que ela me volte a procurar e possamos continuar a lutar.
Com as pessoas infelizmente não há essa nobreza. Vivem na pequenez do momento, sem amanhãs nem horizontes, e com essas já não luto. Mas também não as mato: desprezo-as, e deixo-as viver na sua doentia mesquinhez.

O meu direito à preguiça

O dia está de Outono, não chove, mas apetece estar em casa a ler um bom livro e a ouvir música, sobretudo barroca, como por exemplo Georg Philippe Teleman, no seu estilo entre Bach e Haydn.
Quero ficar em casa, porque hoje sinto-me especialmente virado para ser eu próprio e mais ninguém, a escolher o meu mundo e que esse mundo se confine ao espaço da minha biblioteca, que embora tenha alguns milhares de livros é apenas o meu "pequeno mundo".
Não quero fazer nada a que me sinta obrigado, a ter compromissos, horas marcadas, tudo, enfim, que me tire tempo ao tempo, ao meu tempo. Ficar a ouvir música. O meu Filho Manel pôs-me no computador horas e horas de boa música. E mesmo sem ser genro de Karl Marx, sinto-me com o direito à preguiça. Só não sei se foi por isso que ele escreveu isso na prisão de Sainte-Pélagie. Nem se foi por preguiça que ele e Laura, fizeram um pacto e se suicidaram os dois. E se calhar nem é preguiça, o que eu tenho, é uma necessidade de estar comigo, o que é bem diferente. Eu e a minha solidão sentimos-nos bem um com o outro. Estou cansado do mundo. Do lá de fora, quase sempre sem interesse, quase sempre cheio apenas de imensos vazios, que é o que menos me atrai e satisfaz. Não do meu mundo interior, que cada vez tem mais mundos. Fico aqui, agora a ouvir um nocturno de Chopin, esse polaco que sempre me fascinou e me ajuda - parece um paradoxo - a simplificar os meus dias, a minha vida, e me faz sentir mais leve, como antigamente se aliviava o peso das caravelas para se poder continuar a navegar.
É, apetece-me deitar tudo fora. Desfazer-me de tudo a que me tenho agarrado e ficar só com o amor que me dão e eu dou, como quem respira. E lembro-me de Gandhi, de Lanza del Vasto (que tive o prazer de conhecer pessoalmente) do nosso excêntrico filósofo Agostinho da Silva. E apetece-me ler e ir rasgando página a página e deitar para o lixo à medida que for lendo. Ficar sem as palavras que li mas apenas e só com o que senti ao lê-las. Voltar a ser o rapaz que já fui, e poder dizer como Miguel Torga ", ser neutro como um rapaz, que come e bebe a cada hora sem saber o que faz" e depois" deitar-se no banco mais comprido que vagasse e pudesse dormir". Sim dormir, é tão importante esquecer-me de tudo e aprender a só reter o que é importante, para depois me lembrar das coisas que de facto me fazem falta e me fazem sentido.
Deitado no sofá da minha biblioteca, poder reinterpretar-me como pessoa, reinventar-me como homem. E ter tempo, o meu tempo, sem que nada nem ninguém o venha perturbar. Reinterpretar o tempo e inventar o tempo que me resta, para que me reste mais tempo. A verdade é que os calendários mudaram várias vezes ao longo dos tempos. Sei lá se este está certo, definitivamente certo. Costuma dizer-se que o mundo dá tantas voltas! Porque é que eu não hei-de adoptar um, que em vez de ter os actuais dias, tenha mais uns dias e os dias tenham mais umas horas, e até as horas tenham mais uns minutos. Quero lá saber das rotações, das translações! Agora só quero saber de mim, nesta preguiça egóica de me deixar a sentir. Sim, penso que tenho todo o direito a esse egoísmo. E mais, chego mesmo a pensar que quanto mais souber estar comigo, melhor saberei estar com aqueles que verdadeiramente amo e sei que me amam. A minha Mulher, os meus Filhos e Netos e alguns Amigos, poucos, bem sei, mas exactamente por serem poucos os amo tanto. Já dizia Albert Camus: " porque será preciso amar raramente para amar muito?". É por isso que quero deitar fora tudo, que só me estorva, para ficar só com aquilo que tenho a certeza (?) que posso enriquecer e me pode enriquecer a mim também. E enriquecer o quê? No fundo este meu olhar sobre as coisas e as Pessoas, este olhar que às vezes se enche de lágrimas, num misto de tristeza e de saudade por tudo o que perdi, e de esperança no muito que ainda tenho para dar, viver e amar, porque então, se não amar e não me sentir amado, já não me deito no sofá da minha biblioteca, deito-me fora a mim mesmo , como coisa sem qualquer valor nem préstimo, como um lixo apenas.

Novas mensagens

Passo imenso tempo sem vir aqui escrever qualquer coisa. Os meus amigos que não perdem a esperança de me encontrar de vez em quando a blogar, dizem-me que devia escrever mais. Mas isso não é bem assim. Para mim escrever é como fazer amor: nem sempre apetece. E, depois, de repente apetece-me imenso. Só aí é que escrevo. Detesto encomendas. Sabe-me a plástico.
A verdade é que tenho escrito aqui bocados do que estou a escrever num dos meus livros - estou a escrever três ao mesmo tempo - . Estes textos são de facto excertos do "A Cor e o Som", o livro mais diferente, mais ao meu gosto e ao meu estilo, não me obrigando a nada nem muito menos a que as coisas que escrevo batam certo. Escrevo. Sobre os outros dois, mais técnicos, - um tem a ver com o desenvolvimento pessoal nas empresas e o outro com psicoterapia, em textos pequenos, de página e meia, duas páginas, uma espécie de livro de auto ajuda como agora está na moda - . Se calhar apenas mais um. Mas escrevo na mesma. E hoje vou voltar a escrever o que me der na telha.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Vou crescendo, neste desejo de viver que me vai matando, quanto mais cresço, e vou morrendo quanto mais vivo e a pouco e pouco vou sendo, um círculo em que me vou alargando, como se fossem os círculos que uma pedra faz quando cai na agua. E vou sendo círculos "ad infinitum", ao perder-me pelo mar do meu descontentamento, e continuo a ser círculo até morrer, feito de círculos de espanto e de incerteza, até me sentir a morrer de imortalidade e beleza.
A verdade é que ninguém me perguntou se eu queria nascer e viver. E sei que também ninguém me vai perguntar se quero morrer. Sou uma coisa que acontece e vai sofrendo transformações. Sou uma coisa com várias cores, com vários sons, sou uma coisa que pode olhar para tudo porque tenho mil olhos, espalhados por todo o corpo. E como sou uma coisa não morro, vou durando, mesmo que me desfaça em pó.

domingo, 1 de novembro de 2009

Fingi

Fingi acreditar em tudo à minha volta, que tudo o que me diziam era verdade, e a verdade estava naquilo que me diziam. E fingi continuar a fingir, enquanto tentava perceber se a verdade eras tu, ou se a verdade era apenas aquilo que me dizias.
E comecei a sentir-me dividido, mais do que entre ti e mim, comecei a sentir-me dividido entre a terra e o céu e o ar que me falta quando te olho e sinto.
E a não ser só da terra como os homens, nem só do mar como os peixes, nem só do ar como as aves. A ser a soma das parcelas e o total desses elementos num só, que és tu.
Mas descobri, bem no fundo de mim, que quando choro impossíveis, sinto-me da terra e do mar e até do ar quando consigo sair de mim e por fim te respiro.
E do olhar com que te olho, vejo cores, oiço sons e escrevo palavras sem nexo, como é sem nexo todo este ter-te sem te ser, sendo apenas de tudo o que perdi, o resto.
A verdade é que sou um eterno prisioneiro, fechado a sete chaves, pela terra que tenho debaixo dos pés, e pelo ar que ciranda á volta da minha cabeça sem norte. Só me liberto, quando mergulho nas ondas do meu sentir e fico com o mar todo dentro de mim.

Diferente

Sou diferente. Gosto de ser diferente. Há muito que embarquei nesse barco sem destino, nessa aventura de ser diferente, em "As Aventuras da Diferença", como lhe chamou Gianni Vatimo, o filósofo italiano publicado em Portugal na Biblioteca Filosófica das Edições 70. E por isso choro. Às vezes. Tantas vezes! Porque não existe um conceito que possa ser predicado de todos os outros conceitos, neste pensamento que se pensa a si mesmo, e vou lendo Aristóteles, o Estagirita, sempre a oscilar entre o idealismo e o materialismo, e se choro é pela verdade, pela beleza, pelo bem e pela unidade. E a música toca dentro de mim a Valsa Triste, de Sibelius, o adagieto da 5ª sinfonia de Mahler, o concertino para guitarra e orquestra de Bacarisse. E a música invade-me de cor, possui-me de beijos, por ti, meu Amor. E é com pinceladas de cor, que encho a tela de te sentir, e sinto a harmonia das esferas, a rasgarem-me a alma num suspiro feito do azul dos teus olhos.

A Sombra o Tempo e o Vento

Este viver mundos paralelos, mundos que sonho mas não sei que existem, faz com que me apeteça roubar o tempo, roubar a sombra que a sombra faz às coisas, e que as coisas fazem umas às outras. E ao tempo. Roubar o pensamento de quem amo só para que me ame cada vez mais. Só para que eu ame até morrer de Amor. Roubar o próprio tempo e o que a sombra desse tempo faz no meu pensamento. Mas tenho medo de a roubar, porque como dizia uma história que li uma vez "quem roubava nunca era castigado por ter roubado. O castigo que davam era fazer com que o ladrão nunca mais fosse pessoa". E isso, eu também não quero. Só porque nem sei o que quero, quando pergunto ao tempo o que é que ele me fazia se eu o roubasse. Se calhar ria-se, e o riso, disso não posso esquecer-me, na Idade Média - que é por acaso esta, para onde já há uns tempos me mudei e em que estou a viver agora - é demoníaco.
Deito-me sem conseguir dormir , e sento-me à mesa sem conseguir comer. Esqueço-me do que é dormir, esqueço-me do que é comer. Esqueço-me, simplesmente, de existir. E já não me lembro de nada a não ser das tuas mãos, naquele dia, a taparem-me a cara para que eu não te visse a chorar. E apeteceu-me ser alma, poder ser o vento e o calor do Sol, que sempre soube que te acalma, e depois, partir pelas águas que invento e conseguir ser para além de mim, em ti, meu outro que não conheço, mas sinto dentro de mim num profundo desalento. E sei que depois morri, porque me fundi com a minha sombra, e a minha sombra era tudo sem ser nada. Era um vento. Apenas um vento. Nada mais.