quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Sentei-me à mesa

Sentei-me à mesa. Tirei do bolso um baralho de cartas. Baralhei-as, parti e dei-as aos meus parceiros que invento, imagino, sonho.
As cartas estavam em branco, como estão sempre em branco as cartas que escrevo a quem amo. Só para que adivinhem o que eu lá poderia ter escrito. E sou eu e mais três de mim, a jogar, a dizer coisas, a fumar e a beber. Até a fazer batota. Faço tantas vezes batota comigo mesmo!
Mas tudo, afinal, se passa dentro de mim, e a mesa não é senão a palma da minha mão aberta, em procura, sempre à procura. À procura!
Não sei se de ti ou de mim. Mas à procura. Não sei se de ti ou de mim.
Depois recolho as cartas, uma a uma. Escolho a que parece fazer-me mais sentido, meto-a numa garrafa que rolho para que a água não apague o que não escrevi, e atiro-a ao mar. Ao mar do meu esquecimento.
Não sei se de ti ou de mim. Do meu esquecimento. Não sei se de ti se de mim. . .

Esta noite

Esta noite sentei-me em frente de um tabuleiro de xadrêz, sem peças, e fui adversário de mim mesmo. Adoro jogar comigo. E perder. É uma forma como outra qualquer, de ser perverso.
Nem sequer sei jogar, nunca soube, mas imaginei-me apenas, como terá sido quando me sentei uma vez a jogar xadrêz com um persa, em Xiraz, no século XIII. O vinho era de lá.
E contei-me histórias, para o entreter. Mil e uma histórias. E dei comigo a vender tudo e a comprar espanto, como costumava dizer naquela altura um poeta meu amigo que se chamava Jalãl ad-Din Muahmmad Rumi.
E procurei nos frascos de uma farmácia antiga esta poesia, que por ser dele, eu gosto:
"Vem
E dir-te-ei em segredo
Aonde te leva esta dança.
Vê como as partículas do ar
E os grão de areia do deserto
Giram desnorteados.
Cada átomo,
Feliz ou miserável,
Gira apaixonado
Em torno do Sol".

Também eu giro apaixonado, desde sempre e até hoje, mas já não sei é se em torno do Sol, se da Lua, Tu, meu amor que não me encontras.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Todos os dias

Todos os dias se pode tirar alguma coisa de nós, só porque se está vivo e se vive a amar.
"Partir é morrer um pouco", como diz a letra de um fado.
Mas viver também é morrer um pouco, como diz este fado que a todos nos reje e nos faz cantar.
E todos os dias se pode cantar, só porque se vive e se vive a amar.

E a minha alma . . .

E a minha alma atormentada pelos espíritos dos ventos, caíu, entre choros e lamentos, como uma ave atingida em pleno vôo por uma seta certeira.
E beijei-te o olhar, como se já só pudesse beijar os ventos por ele a passar.
E beijei o vento, que levou com ele o teu olhar.
E o teu olhar e o vento foi tudo o que me ficou nas mãos, para dar.
E a minha alma atormentada escorreu-te pela cara abaixo num sorriso.
E a minha alma partiu sem me levar, mas deixou-me como presente, o teu olhar.
E eu, ave perdida pelos ventos, pude continuar a voar.

Os Prados

Dos prados que pinto, mesmo que só com os pincéis da minha imaginação, espero sempre que me digam alguma coisa. Sempre tive, dentro de mim, essa esperança secreta de um dia os conseguir ouvir a falarem-me ao ouvido, num sussurro, como me sussurra sempre ao ouvido o vento dos meus sentidos, esses ventos que por mim passam, perdidos.
E fico à espera que me perguntem quem sou, como sou, do que gosto, no que penso, para assim começar a nascer entre nós uma amizade que sonho seja, pelo menos tão bonita, como os prados que pinto na minha imaginação.
Mas não oiço nada, por mais que espere. Os prados ficam calados, talvez por timidez, chego até a pensar. Se calhar como eu também. Há coisas em que somos tão parecidos!
Só depois é que descubro, numa quase exaltação, que esses prados me falam, sim, e me dizem coisas ternas nesse silêncio que eu não sei escutar, e de que não me consigo preencher.
E chego à conclusão que viver, e sentir o que se vive, é ficar só, a escutar o silêncio e a olhar a terra e o mundo com os olhos cheios da ternura que se tem pelo amigo que se ama mas não se consegue entender.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Hermann Hesse

Há muito tempo que li Hermann Hesse. Houve mesmo uma altura que ele foi o meu autor favorito.
Lembro-me de "Narciso e Goldmund", de "Ele e o Outro", de "Sidharta". E fico a pensar comigo que nem sou ele nem o outro. Talvez seja "O Lobo das Estepes". Talvez seja . . .
E preferi ser Govinda e não Sidharta.

A luz

Entrei na Igreja devagarinho, sem querer fazer barulho, quase a medo.
A luz ogivada, abobadada, com arestas e nervuras onde tudo se esbate, é só memória.
Nos vitrais as cores são as cores de si próprias, e o chumbo a colar os vidros, de vidro, fazem-me entrar numa vertigem estilhaçada de santos que foram homens, e de pessoas que só conseguiram ser santas. Mais nada. Entretanto, num cravo bem temperado, Bach ecoava por evangelhos que eu nunca tinha lido.
Quiz rezar mas não tinha onde. Estava tudo ocupado pela luz e por aquela música que me diluia no lajedo, nas colunas, nos portais das capelas laterais. Escondi-me atrás de mim, e só num cantinho mais escuro pude então chorar.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Canso-me

Às vezes canso-me destes meus encontros com Deus, sempre rápidos, a correr, numa espécie de toca e foge, de quando eu brincava na escola. Quero mais!
Não sei é se é Deus que brinca comigo, se sou eu que brinco com Ele. Sinto que muitas vezes não tenho ninguém com quem brincar.
E acabo por ficar amuado, a um canto, à espera que toque para a próxima aula.

Quando penso

Quando penso que há pessoas que acham que me conhecem bem é que percebo que não, que não me conhecem de todo. É apenas aparência, ilusão, um despropositado convencimento.
Eu sou sempre aquilo que quero ser e não, aquilo que os outros pensam que eu sou, ou gostariam que eu fosse. Engano-as e riu-me disso.
E até a morte engano. Costumo, como o poeta Sebastião da Gama, ter sempre o relógio adiantado 5 minutos. Assim, quando a morte chegar, preparada para me levar com ela, eu poderei sempre dizer-lhe: calma, ainda faltam 5 minutos.
E assim tenho tempo para rir, de me preparar para morrer a rir.

Os meus dias

Os meus dias são sínteses, constantes e obsidiantes sínteses, e cada vez mais me vou apercebendo que a suprema, a mais perfeita síntese, é a morte.
Mesmo aquela morte de que se morre de todas as vezes que se quer dar vida, depois de se fazer amor.

Virginia Wolf

Virgínia Woolf encheu os bolsos de pedras, ou de morte? De qualquer maneira foi a pouco e pouco entrando pelo rio até perder o pé.
As horas que levava no olhar decidido deviam passar lentas, como as pedras nos bolsos também iam lentamente pesando, como os amores perdidos, que esperou viver com aquelas mulheres que tanto amou. Que foram "ondas", nas praias por onde se passeou.
Fui à estante e fiquei indeciso se devia voltar a ler o "Orlando", de Virgínia Woolf ou a "Loucura de Orlando" de Ludovico Ariosto.
Preferi Virgínia Woolf, uma mulher que também tive uma imensa curiosidade de amar, na minha inquieta adolescência. Virgínia, a "pura e simples" que nunca consegui ser.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Realidades

Olho à minha volta e procuro encontrar realidades naquilo que imagino. E não me sinto a amar demais, doutra forma não seria amor o que estaria a sentir. E procurei Deus como se estivesse cansado de me encontrar com Ele às escndidas para podermos brincar aos casamentos morganáticos, românticos, lúgubres, como se me tivesse morrido a vida.
E estava escuro, e havia nevoeiros numa alvorada mortiça, em que me afastava de mim com pena de me ter perdido e não O ter encontrado.
Não sei se a morte tem sentido para mim, se ela é a própria falta de sentido, se é a tal "vaga fantasia" ou se é só uma intuição de quem dela se está já a aproximar sem se dar conta.
As doenças continuam a inventar a morte, e a morte, oh! paradoxo, é quem no fundo as inventa. Não penso muito nisso, ao contrário do que alguém poderia pensar. Mas sinto que gostava de ter como amigo um Catilina qualquer, que me ajudasse a vituperar a vida, que no fundo é uma forma de morte. Sempre.
Até parece que acabei de ler Soren Kierkgaard, mas não é verdade. Já o li há muitos anos e lembro-me muito bem de quando ele disse que "contudo, um dia Lázaro também morreu".
Mas Deus não, posso assegurar que não, e que, pelo contrário, continua vivo e de saúde, por mais que ao longo da história o tenham tentado matar. Os "filósofos da morte de Deus" é que já devem ter morrido todos. É isso, só me resta fazer com Ele um casamento morganático, para que ninguém nos veja e possamos ser felizes um com o outro, livres de ciúmes e de invejas. Livres, como só com Ele algum dia me poderei sentir.
E isto tudo, esta confusão toda de estar aqui à conversa comigo, e com mais alguém que vou inventando ao longo da conversa, a procurar encontrar realidades naquilo que imagino, só me diz e volta a dizer, que não amo demais, senão não era amor o que sinto.
Quanto muito tenho que aceitar que me achem egoísta em só O querer para mim. Mas também não é verdade: sou suficientemente lúcido para saber que só O tenho na medida em que O dou e O reparto contigo, meu Amor. Estas são as minhas realidades, por muito pouco reais que elas sejam. Pelo menos sonho-as. E sonho-O.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Nasci

Nasci do vento e da espuma, quando se encontraram e se amaram numa anfidromia qualquer, no mar alto, enquanto Claude Debussy compunha o "Diálogo entre o Vento e o Mar".
À noite, as estrelas vieram iluminar o meu olhar inquieto e tive como madrinha a lua ao som do "Clair de Lune".
Depois comecei o meu peregrinar, pelo mundo de mim, às vezes sem luz nem esperança, outras vezes com a certeza de que era eu a nascer todos os dias, para todos os dias sentir em mim o que a vida me ia dando. Mas não me dava um padrinho!
Depois, cheguei até hoje, esquadrinhando o passado, olhando para trás, convencido de que quanto mais caminho tinha percorrido, mais caminho tinha ainda que percorrer.
Depois . . . sentei-me aqui a escrever estas linhas e a ouvir o "Canon", (de seu nome completo, "Canon e Giga em Ré para três violinos e um violoncelo"), escrito por Johann Pachelbel no fim do século XVII, e a pensar num filme de que me tinham falado, com esta música, de um realizador que não conhecia, José Luís Garci, o "Voltar a Começar". E senti-me também eu a voltar a começar. E nasci. E tive por padrinho, Pachelbel. E fui o único violoncelo.