terça-feira, 24 de abril de 2012

Não faço

Não faço, habitualmente, cerimónia com aquilo que penso e digo, nem tenho qualquer acrimónia para com os que a fazem comigo. É lá com eles.
Às vezes sinto-me um bom advogado do diabo em causas erradas. É como se simplesmente encontrasse prazer na forma como aprendo a aprender, a errar para poder corrigir o erro que sou eu, advogado do diabo das minhas causas perdidas mas em que acredito. E não faço cerimónia em dizê-lo.
A minha sabedoria é inútil, atravanca, estorva, esvazia em vez de encher.  A minha sabedoria é não saber.
Só me resta exilar-me, fazer como Pizarro, deitar fogo aos meus barcos interiores para ter a certeza de não poder voltar atrás.
E depois partir à procura do El Dorado, que trago dentro de mim bem guardado, para te oferecer um dia, em que me consiga esquecer que parti antes de ter chegado.

Fantasia

Fecho-me em casa a escrever, mesmo sem papel nem lápis.
Oiço música e imagino-me numa ilha. São as ondas a rebentar na praia e os pássaros a cantar no arvoredo.
E sinto-me de facto a viver uma imensa solidão, de que no fundo preciso para ser um pouco mais eu, ser a própria ilha e ser o mar imenso que a rodeia, como se fosse só uma das lágrimas que por ti choro, fantasia.

Vou

Vou pela rua, com as mãos nos bolsos, e onde também guardo algumas das minhas tristezas, alguns dos meus pensamentos mais reservados. Vou a pensar quem sou. É, sou eu mesmo, aquilo que também sou, o que fui, o que serei e o que nunca saberei ser, porque sou demasiado bem intencionado e vivo longe de todas as definições, regras, espartilhos, fundamentalismos. Só sei mentir com a verdade.
Vivo porque respiro, ando porque tenho pernas, penso porque sou capaz de sentir, amo porque não sei ser indiferente ao amor, e se deixasse de amar, era porque tinha deixado de respirar.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Já me canso

Os anos vão passando por mim, como por tudo. E o tempo vai-me desgastando, cansando, vai-me fazendo já perder a paciência de viver, esta vida que também se vai esgotando, e em que se vai também esgotando tudo.
Quanto mais vou envelhecendo, mais me arrasto pela vida como por uma imensa maçada (não a armação para pescar lampreias, não tem nada a ver).
Sinto que é o tempo a passar, como se fosse uma ventania, que me sacode, abana e cansa por me obrigar a fazer tanta força para não me deixar enrodilhar e cair.
E a lentidão do tempo a passar também me cansa, não me deixa viver tudo de uma vez, e pronto! E é quando me lembro que Bergson dizia que "o tempo é um dispositivo que impede que tudo aconteça de uma só vez". E sinto que não posso lutar mais. É mesmo assim. O tempo, a pouco e pouco, vai-me obrigando a viver enquanto sinto cada vez menos paciência.

Cabo da Roca

E lá vou eu, como faço todos os dias, aqui para perto, para o Cabo da Roca, para o meu posto de faroleiro, para bem do alto destes penhascos, fazer sinais para esse grande navio, em que nunca parto mas que também nunca vejo a partir.
E sinto que sou eu próprio o farol, na popa do navio ou na gávea do mastaréu da gata. Ou então saio de mim, subo ao meu eterno cesto da gávea, bem em cima das rochas, e de mim, perscruto o horizonte com os olhos muito abertos e grito sempre muito alto, para ninguém me ouvir: mar à vista!!! Mar à vista!!!

Devia ter nascido

Devia ter nascido de mim mesmo, e já muito velho, como num filme que por aí passou há uns tempos, e depois, também eu, como no filme, a pouco e pouco fui andando a caminho da minha da minha juventude, da minha adolescência, da minha infância.
O tempo para mim sempre foi o contrário do tempo, e por fim consegui também ser o contrário de mim, o que sempre me fascinou.

Na Escócia

Quando andei durante um ano à boleia, a certa altura dei comigo a comer o meu magro almoço, sentado num rochedo bem por cima da garganta onde começa o Loch Ness.
Tinha resolvido ir para a Escócia para saborear aquelas montanhas e aqueles lagos, de que o Loch Ness é o maior. Secretamente esperava poder ver o monstro e até tirar-lhe umas fotografias. Subitamente comecei a ouvir a música de uma gaita de foles, tão escocesa, tão celta. A vista lá de cima era soberba. E um pequeno barco à vela, com um homem a tocar a gaita, surdiu lentamente de um ponto que não me era dado poder ver, possivelmente de uma caverna nalguma pequena praia escondida num recanto dos rochedos.
A música daquela gaita de foles subiu até mim ao mesmo tempo que um arrepio me percorria o corpo todo. A beleza de tudo aquilo era de tal maneira, que só a pude sentir. As lágrimas correram-me pela cara abaixo, e a sensação foi tal que me senti a fazer amor com a natureza, e por extensão, com o mundo.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Parti

Parti em busca do teu olhar. Parto sempre. Parto todos os dias. Penso mesmo que sempre parti nessa busca desde que me sei e me sinto, nesta vida, e se calhar já noutras por onde tenho andado sem saber.
E vou por vales e pedras, subo e desço rios, sobretudo os que tenho dentro de mim, e que também partem sempre em busca, de um olhar que lhes indique uma foz, onde possam desaguar num mar qualquer que os leve até se perderem e diluirem no nada e no tudo de que são feitos.
E vou por sonhos e desejos, numa maneira muito minha de me esquecer de mim para só te ter a ti como horizonte, de me esquecer que parti em busca do teu olhar, para o encontrar em tudo que vejo, em tudo o que sinto, em tudo o que sonho.
Depois quando de uma vez o Sol me bateu bem de frente, e, encandeado por aquela luz intensa, e deixei de ver, tudo, só então vi, vi como nunca, o teu lhar.