quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Noites e dias

E fiquei com os olhos cheios de noite, e senti-me livre do passado. Nascia de cada vez que me ia lembrando de ti, nascia para ti e para mim, sempre a recordar-me de quando "tinha rasgado o ventre a minha Mãe".
E foi assim que fui nascendo, hoje por uma coisa, amanhã por outra. Nascia só por nascer, só porque sim. E voltava a ser pequeno, frágil, indefeso, dependente. E como cada nascimento é sempre uma separação, eu ia nascendo para me ir separando de tudo. Até de mim, que afinal não conseguia encontrar em parte nenhuma. Mas ia-me separando da vida, do mar, de mim.
E a noite caíu-me em cima, como uma faca assassina, e rasgou-me os pensamentos como quem rasga lágrimas por chorar.
Depois olhei-te e vi lá no fundo uma alvorada. E a estrela da manhã foi o Sol que me aqueceu a dor de te perder.


Pensei nuns poemas de Antero. Em muitos. E também arranjei um castelo. Com uma porta pequena, bem pequena, por onde tive que entrar todo curvado, a lembrar-me da pequenez humana.
E parti por paisagens de antes de mim, de antes dos homens, e fui dizendo poemas, uns atrá dos outros, como quem sabe de cór uma oração, como quem sobe escadas para poder por fim descançar na tua mão direita.
E senti vergonha do meu cansaço. E deixei que uma chuva miudinha me molhasse até aos ossos.

domingo, 14 de agosto de 2011

ESQUECER

E beijei-te com a avidez de quem tem fome desde há muitos sonhos. E senti que o teu olhar me perguntava se era tudo verdade. Foi quando vi que uma lágrima te corria pela cara e me gritava angústias. E até me molhou o peito, enquanto as minhas mãos se passeavam pelo teu sentir.
Voltei a beijar-te, os gestos e o sorriso, e com as minhas mãos vazias, esculpi na pedra o teu olhar, e esculpi também depois o travo com que fiquei, ao saborear em ti tudo o que o meu sonho um dia me tinha contado. E sofri, sofri para depois te poder esquecer.
E resolvi fugir de ti e de todos, e exilar-me nos confins do mundo levando comigo debaixo do braço um livro de Vintila Horia: "Deus nasceu no exílio".
Também Augusto exilou Virgílio para os confins do Império, para Tomes, o país dos Getas. Só que ele, mesmo assim tinha um cão a que pôs, como vingança, o nome de Augusto.
Mas eu não quero ter cão nenhum, e se tivesse, nunca lhe poria o teu nome. Quero esquecer-te, mas sobretudo, quero esquecer-me. De mim. Única forma de me libertar, e ficar preso.
Foi quando senti que Zamolxis, ao vêr a minha fé, me recebia e apertava ao peito.


segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Interrogações

Sei ou penso saber, que, de algum modo, somos um, e é por isso que pertencemos a uma coisa a que se chama civilização.
Mas será que tudo é igual para todos? E o amor? E esse teu olhar que guardo ciosamente, como só meu? E as lágrimas que só por ti choro?
É pelo diferente e pelo contrário que vamos sendo, mas até quando?
E lembro-me daquele fado que o Carlos Ramos cantava, "não venhas tarde". E fico a pensar que um dia também acabarei por ouvir "não venhas cedo".


Afinal acabo por chegar à conclusão de que todos somos o tal "cadáver adiado" de que fala o poeta.
E eu? O que vou eu adiando, na esperança de poder um dia viver?
Ainda vou tendo carne, e dentes, e nervos, e voz, e unhas com que arranhar o tempo e poder gritar por ti. Tenho. Mas tenho o quê, se já não tenho esperança?
Sei que sem esperança não posso viver. Será que é feita de ar?

Vou-me fazendo da vida que vou vivendo.
E caminho como um cego, guiado apenas por um "para onde não sei". Mas que no entanto sinto, e é nesse sentir-me que vou aprendendo que o meu destino sou eu, embora não seja eu a traçá-lo.
Cego, toco a vida de ouvido, no meu violino sem cordas e sem alma. Toco notas que vou pensando, enquanto vou andando por caminhos que nunca encontro.


Nunca percebi se no dia em que nasci, também foi o dia em que morri. E esta sensação de poder ser póstumo de mim, faz com que me apaixone pelas ciências inexactas, porque nunca me dão resultado nenhum. Não têm começo nem fim.
E porque me hei-de interessar por resultados, se eles são sempre um acabar, um ponto final no parágrafo de mim?
E depois fico sempre com esta pergunta: será que eu um dia também nasci?

Pergunto-me muitas vezes "para onde vais?" E sei que não sei, é escusado, a não ser que não vou por onde os outros gostariam que eu fosse, e me dizem mesmo para ir. E insistem.
Orgulhoso? Soberbo? Penso que não é isso exactamente, mas porque sou um insatisfeito, um inacabado, um por acontecer, por nunca me chegar a concluir. Sempre em devir, isso sim, sempre em devir.
E perdido de todos como quem se perde de si, sem lugar, sem uma pedra sequer, onde deitar a cabeça e descansar, não cabendo em parte nenhuma, terra, estradas, montes, mares, desertos. Em parte nenhuma. Nem na parte que me cabe só por estar vivo, mas onde mesmo assim não caibo.
Não, não tenho caminhos que me cheguem. À minha frente o tudo e o nada confundem-se, e para me distrair ponho-me a ouvir o Adagietto da 5ª sinfonia de Gustav Mahler.


Se ser é ser diferente, como disse Karl Jaspers, como consigo eu, às vezes, ser diferente sem ser?
Tenho pena de ter perdido um livro em que ele dizia isto. Mas também já perdi tanta coisa na vida, que até já me é indiferente ser ou não ser diferente.
E se continuo a ser sem saber quem sou ou o que sou, resta-me ter amanhãs e procurar ser eterno. E a diferença estará nisto: se me pergunto, é porque existo.

Mais uma coisas que fui escrevendo

E ele respondeu-me:
Sou um romântico de pechisbeque, uma partícula do que realmente gostaria de ser, ou de ter sido, e que até consegui ser, em certa medida, mas noutros tempos, há muito tempo. Raspo o ouro, da aparência, e o que aparece é de facto um pouco de zinco e de cobre. Mais nada.
Sabes, continuava ele, sou uma imitação de mim mesmo, uma caricatura, uma fraude. Um aproveitamento que faço, e bem, confesso, da estupidez humana.
Mas é disso tudo que também faço a minha obra de arte, e, apesar de tudo, sinto que essa arte é a minha forma de ver Deus, e, como para mim, tanto a Arte como Deus, são duas coisas invisíveis, só as posso sentir! E sinto, à minha maneira! Isso sinto! Acredita. E é a sentir tudo isso que eu próprio sou Arte.
Foi quando me lembrei de Giovanni Papini, em "O Livro Negro", naquela entrevista que ele faz a Picasso e onde este lhe diz que, e cito, "verdadeiros pintores foram Giotto e Ticiano, Rembrandt e Goya: eu não passo de um "amuseur public", que compreendeu o seu tempo e explorou, o melhor que soube, a imbecilidade, a vaidade e a cobiça dos seus contemporâneos. É uma confissão amarga, a minha, mais dolorosa do que lhe poderá parecer, mas tem o mérito de ser sincera".
"Et après ça, concluiu Pablo Picasso, allons boire".
Também eu fui beber um copo com o meu amigo, feliz por ter um amigo capaz de se abrir desta maneira comigo. A sinceridade com que me falou, fez com que eu o tivesse começado a amar muito mais.