segunda-feira, 26 de março de 2012

Beatriz Costa

Perco-me no tempo e nunca sei muito bem que dia é hoje. E isso tanto me faz. À vezes lembro-me da Beatriz Costa, quando dizia que tinha três idades: a que realmente tinha, a que os outros pensavam que ela tinha e a que ela queria ter.
Comigo não é bem assim, mas nunca tenho a idade que a idade me vai dando. Vou sendo e vou estando sempre numa forma gerúndica de ir vivendo.

Reparei

Passeava distraído ao longo da praia, e reparei em alguém, que ia muito devagar, como que a despedir-se da vida, duma vida que tinha sido para ele como um amigo ingrato, traiçoeiro, que só o tinha feito sofrer.
E reparei mais. Chorava.
Aproximei-me dele e fiz questão de lhe perguntar se precisava de alguma coisa. E ele respondeu-me: gostava que me ajudasse a esquecer-me de mim, mas como fui sempre uma infinidade de outros sei que nunca mo conseguirá fazer. Deixe-me simplesmente , alguma vez, conseguir não ser.
E continuou a andar, como se arrastasse consigo, o mundo.

Nasci

Nasci como toda a gente, num dia como qualquer outro, num tempo que passou a ser o meu. Hei-de morrer também como toda a gente, quando esse meu tempo acabar, e espero que minimamente contente por ter cumprido o meu destino que é, e sempre foi, o de não ser muito diferente do de outras pessoas, nesta vida que num determinado momento começou, há milhares de tempos, e também há-de desaparecer daqui a não sei quantos milhares de momentos.
Só não me conformo com uma coisa: com este meu ser sempre eu, por mais que tenha crido ser outro. Ou nem isso, e ser apenas um talvez . . .

sábado, 24 de março de 2012

Tudo em mim

Tudo em mim se transforma em tempo. O próprio tempo. No que já passou, no que vivo agora, neste momento, e no que estou à espera de poder viver amanhã, se Deus quiser. E o curioso é que tudo isto não passa de um pequeno ponto perdido no universo sem limites, de um grão de areia perdido num deserto imenso, de uma gota de água perdida num oceano sem margens.
De mim também, perdido de mim em mim, num ponto, apenas num ponto em que eu não sou senão e só "um átomo a mais que se animou".

À porta

Tenho sempre a morte sentada à minha porta, à espera que lhe faça um sinal para poder entrar.
E faço, de vez em quando faço. Mas acho que ela finge que não percebe, e eu fico a pensar que se calhar me acha demasiado pesado e, velha como é, já não está para grandes esforços.
E eu, para evitar ter discussões, passei a sair pela porta das traseiras.

Aprendi

Aprendi com uma tia já muito velhinha, a tricotar, a fazer ponto de cruz e bilros. Entretanto íamos conversando, de tudo e de nada. Íamos simplesmente conversando.
E foi com ela que aprendi uma coisa extraordinária: é que a vida é apenas um imenso rendilhado, onde nós apenas somos os espaços vazios entre entre as linhas que formam os desenhos a que chamo vida.

Toda a gente

Toda a gente tem uma certa vergonha de mostrar a nudez do seu corpo. Eu tenho mais vergonha de mostrar a nudez da minha alma.
E tanto o meu corpo como a minha alma, me limitam, e me fazem sentir a caminhar entre muros de uma azinhaga escura, sinuosa e cheia de perigos escondidos, à espreita.
E não sei bem o que me aperta e me confrange, se os muros, ou se essa lonjura que não destingo, e onde o meu olhar se perde, no pudor de ver a nudez das coisas a bordejar o abismo.
Sim, também eu tenho vergonha, sobretudo da nudez do abismo.

Tudo em mim

Tudo em mim é como o tempo que faz lá fora: sou chuva, sou sol, sou vento. É por isso que tantas vezes me sinto encharcado até aos ossos e cheio de frio, ou de tal maneira acalorado que só sonho com água fresca, ou abano como um arbusto perdido no deserto desta vida.
Tudo em mim é tudo isso, que passa, como as estações ou como o tempo que faz lá fora.
Tudo em mim é tudo em mim, e eu sou só tudo o que passa. Sou nada. E isso, para mim, é tudo.

A beleza

A beleza é de tal maneira transparente, que é por isso que não a consigo ver, e se a vejo, vagamente, não a percebo.
E se o meu deus são os meus cinco sentidos, deixo de acreditar nele, porque também não o posso ver nem perceber. Nem a ele nem a mim.
E então a beleza não existe, mas apenas o "resultado das graças".

Na tela

Na tela que tenho no cavalete à minha frente, nesse pequeno espaço em que acabo sempre por me pintar, um pouco à Michelangiu Merisi, mais conhecido por Caravaggiu, por lá ter nascido, sou preso de um medo estranho, quase pânico, e fujo de mim, e não só daquele pequeno espaço em que me sinto, ou pinto, mas para um outro espaço sem fronteiras, o espaço de que me faço, e sou, muito para além desse quadro de mim.
E lembro-me daqueles contos orientais da Marguerite Yourcenar, e apetece-me também entrar no barco que pintei, e ir pelo mar fora até o não sei onde.
Rasgar fronteiras, e geometrias e espaços por onde só ando porque não tenho limites no que me penso. Nem no que me pinto.

Existo

Existo muito por aquilo que vou pondo naquilo que escrevo. O resto é carne, e ossos e nervos, até pensamentos e sorrisos e este estar sempre com tantas saudades de mim.
Se não fosse o amor, esse amor imenso que te tenho, meu amor, fazia coincidir a morte que nunca mais chega, com a morte a que já cheguei há muito tempo, mesmo sem querer, mesmo sem sequer dar muito por isso. Como se fosse apenas "uma vaga fantasia".
É quando chego mesmo a pensar que morri muito antes de alguma vez ter nascido.

Pudor

Se de alguma coisa tenho pudor, é com certeza o de confessar que eu não sou eu. Muitas vezes. Porque muitas vezes não sou senão os outros que em mim entram, e fazem de mim apenas uma parte deles.
E isso é um segredo que guardo ciosamente comigo, até porque, em boa verdade, nem sei muito bem o que pensar disso

Entro

Muitas vezes entro de tal maneira nos personagens que existem nos meus escritos, que eles acabam por ter vida, e até ser eu, como personagem de mim mesmo, o que me ajuda a sentir-me também a existir.
Ao desdobrar-me com eles, como que faço filhos e conquisto assim a minha eternidade.

sábado, 17 de março de 2012

As pessoas

As pessoas nunca são como nós as sonhamos. E se são, é porque o nosso sonho não conseguiu sê-las.
E o mistério está em ficarmos sempre aquém daquilo que somos, mesmo quando sonhamos que as somos, sem sermos nós que as sonhamos.

domingo, 4 de março de 2012

Escrevo

Escrevo e apetece-me deixar tudo na gaveta. Eu sei que quem um dia me fôr ler, vai ler outras coisas que eu não escrevi. Sobretudo vai pensar noutras coisas em que eu não pensei.
E disso tiro apenas um pequeno prazer secreto: o de que eu estou, com certeza, a enganá-los e eles não estão a perceber. Só eu é que sei? Não, claro que não. Há coisas que nem eu sei.
O segredo está aí, e é só esse.

Esta minha

Esta minha dificuldade de ser, ou de me ser, faz-me lembrar Oscar Wilde, ou Borges, ou um dos muitos Giordanos que foram supliciados pela Inquisição.
De uma forma tantas vezes aparentemente frívola, sou a afirmação de mim e é em mim que me procuro, convencido que assim nunca me perco. Giro e girarei sempre à tua volta.
Epur si muove!

Distraído

Distraído a passear ao longo da praia deserta, reparei na minha sombra, que de tal maneira crescia, assustadoramente, como um gigante que a pouco e pouco me engolia, que me diluí nela e desapareci.
Passei a ser qualquer coisa como uma sombra que a própria sombra recurtava. E tentei sorrir, mas nada. Gesticulei, pontapeei, enrruguei a cara, a testa, mas nada. Nem o meu grito nela se recurtava. Muito menos o meu medo. Nada.
Só quando levantei um braço a dizer-me adeus é que reparei que assim desaparecia também de mim e não me via mais. Perdi a sombra e perdi-me. Disse-me adeus e parti.

Quando penso

Quando penso que perco tempo, penso logo que também o ganho. Se calhar é uma contabilidade só minha. Mas é sempre uma forma de lhe dizer que perdê-lo ou ganhá-lo é uma coisa que só está nas minhas mãos. É a única maneira que tenho de o vencer. Ao tempo.
O poeta da Arrábida, Sebstião da Gama, tinha sempre o relógio adiantado cinco minutos. Dizia ele que quando a morte o viesse buscar ele podia sempre dizêr-lhe: espera, ainda faltam cinco minutos.

Estar a conversar

Estar a conversar com um amigo que se ama muito, não é mais do que preguiçar em conjunto, saborear juntos esse abandono do corpo e do espírito ao nada fazer, nada pensar, ao estar simplesmente ali, com ele, sentados ao lado um do outro simplesmente a sentir.

Quase todos os dias

Quase todos os dias escrevo qualquer coisa no primeiro bocado de papel que encontro. Escrevo frases, pensamentos, citações que oiço na telefonia em entrevistas, ou que vejo nos livros que ando sempre a lêr.
Todos os dias eu vivo a vida como se escrevesse uma tese, um ensaio, um conto ou uma poesia de mim mesmo ou do mundo que que me vou confrontando.
Mas o romance, esse deixo-o sempre para nele ir escrevendo a luta tantas vezes confusa, que travo com a vida e comigo mesmo.

Um amor

Vivo um amor há tantos anos! Quase quarenta! Mas sempre me apetece dizer, como qualquer diarista, que continuo e continuamos a inventar os dias e a côr dos dias, às vezes uns também sombrios, outros, a grande maioria, claros e até berrantes.
E vamo-nos inventando também a nós mesmos sabendo sempre e de antemão, que nunca chegaremos a inventar aquilo que já somos. Mas podemos fazer sempre mais, isso Deus deixa.
E como diz o poeta uruguaio e pouco mais velho do que eu, Eduardo Galeano, "somos o que fazemos, mas somos sobretudo o que fazemos para mudar o que somos".

Aceitei

Aceitei aqui há uns dias mais um convite a que não devia ter respndido, por ser comnpletamente fútil, e para estar numa patética e suposta tertúlia onde já sabia que apenas se ia discutir, e acaloradamente, o sexo dos anjos.
Mas fui, só para poder no fim dizer algumas verdades e conseguir assim por parte da maioria uma forte contestação. Então, sim, que gozo!
Valeu só por isso, mas quero prometer a mim mesmo não tornar. É que no mínimo foi uma perca de tempo, coisa a que só os deuses se podem dar ao luxo, os homens não.
E a verdade é que esta vida é demasiado curta para ser pequena.

A pensar

A pensar me entretenho com as coisas do dia a dia. E tudo parece ser muito complicado, como viver até. Mas depois também penso que no fundo não há situações complicadas porque teriam que haver para isso soluções complicads. E se fôr a ver, ou as coisas têm solução ou não têm solução.
E fico a pensar se a complicação está nesta simplicidade.

Nunca

Tantas vezes penso que eu nunca sou bem, bem eu, mas uma miscelânea de muitos eus que comigo têm vivido e continuam a viver.
Tudo o que faço, não é a mim que faço, não me forço nem me destino e por isso perco-me sempre entre o que tenho pena de não ter sido e o que estou convencido que nunca serei.

Ernesto Guerra da Cal

Cultiva o teu futuro
Com amor
Porque ele é o lugar
Onde tens que passar
O resto da tua vida.
Cultiva Deus
Com um amor
Ainda maior
Porque
Com sorte
Com Ele irás passar
O resto da tua morte.

Tenho. Tudo.

Tenho uma forma triste, estranha e sempre insatisfeita de estar na vida. Uma forma de estar e de ser que já não se usa, se é que alguma vez alguém a chegou a usar. Esta, a minha.
Tudo em mim é desuso, é estar fora de moda, porque a moda para mim é sempre alguma coisa que ainda tenho que fazer. Amanhã. Noutro dia qualquer. Numa era aonde ainda não cheguei.
Tudo em mim é desuso. Ou abuso. Ou não sei. Mas tudo em mim sou eu e é nesse tudo que invento e onde ao mesmo tempo me perco que cada vez mais sou eu. E me tenho. E sou tudo.

Longe

É quase como ir morrer longe, já que tenho vivido sempre longe. De mim.
Mesmo neste mundo que inventei com costumes e línguas que muitas vezes não entendo, mas que fui eu quem o criou, como Tolkien, nunca lá estou, porque quem lá está é uma representação de mim. Eu estou sempre longe num não-lugar que invento para me sentir em paz.
Não, ainda não cheguei a sonhar-me noutras eras. Nem me sinto ainda capaz de ser uma árvore ou uma pedra animada, por mais que leia "As Três Matérias" do Stefan Lupasco.
Só consigo viver comigo quando de mim me afasto. Sou assim. Sou o próprio longe onde me sou, longe de mim.

Olho

Olho e reparo que também tenho à minha volta pessoas inteligentes. De uma inteligência diferente da minha. Ou então são só diferentes. E penso que não é por serem inteligentes que são diferentes de mim, mas que é por serem diferentes que são inteligentes.
"Ser é ser diferente" como dizia Karl Jaspers.

Não quero

Não quero que me adulem, nem me admirem, às vezes não quero sequer que me amem. Isso faz-me sentir de algum modo aprisionado, refém desses todos, que no fundo são sempre iguais a fazerem sempre tudo isso e sempre da mesma maneira com todos os outros. São sempre um sempre.
E isso não me satisfaz nem me dá prazer nenhum. Nunca. Sempre.

Humberto Eco

A certa altura li Humberto Eco e a sua "A Ilha do Dia Antes", e lembrei-me de Pessoa quando diz "que há quem acorde no dia de ontem".
Comigo não é bem assim. Acontece-me, muitas vezes é acordar amanhã. E fico sem saber o que fazer nem o que pensar, hoje. Fico como uma criança envergonhada por chegar e não conhecer ninguém.

Vivo

Vivo uma vida que às vezes me parece estar sempre cercada de muros. Tento saltá-los, mas caio, caio sempre desamparado nos braços queridos que me estendes.
Posso nem saber por onde ir, mas tenho-me vindo a habituar a saber que também não é a saltar o muro que encontro o caminho por onde quero ir.
Olho a multidão à minha volta e tenho sempre a estranha e desagradável sensação de me sentir dentro de um túmulo. E a vida para mim acaba por não ser muito mais do que isso. E decido. Fico lá dentro, eu e os meus sonhos que morrerm ainda muito antes de eu ter nascido.

Pus-me à escuta

Pus-me à escuta do tempo, e daquele local onde costumava ficar parado a olhar para mim. Nada me disse nada. E quando reparei, muitas coisas tinham acontecido, a vida tinha continuado e eu para ali estava a olhar para o tempo na esperança de que ele me dissesse alguma coisa. Ou aquele local exitisse e me pudesse encontrar nele, e pensar-te.
Sei que me passeio vezes sem conta pelos meus imensos mares interiores, sempre à procura de ilhas encantadas onde pudesse usufruir desse supremo prazer, que é descansar. E vou à tona da água, como se fosse à tona de mim, e a água fossem dias feitos de sal, de espuma, de tempo e de um horizonte que cada vez estivesse mais longe de mim.
Depois a realidade disse-me que talvez não fosse bom ir pela "espuma dos dias", dos afazeres e das amizades que invento mais do que vivo, sempre sem nunca encontrar a minha e só minha ilha dos amores. A amizade perfeita!
A verdade é que não tenho nenhum Jano para me ajudar e como só posso ver de um dos olhos ainda me é mais difícil ver terra. Canso-me a nadar sem Norte, e sem Sul, por ver ambos ao mesmo tempo e exito como o Burro de Buridan e perco-me no tempo e nesse mar imenso onde inevitavelmente me afogo.

Às vezes sou

Às vezes sou perverso quando olho. Dispo. Não que queira vêr o que possa estar escondido por trás da roupa, mas porque me parece que o erotismo está nesse imaginar, e viver mesmo a aventura de ser um intruso e poder ser apanhado e preso como um ladrão vulgar, embora muito pouco vulgar, porque o que este ladrão quer roubar é apenas vida, a vida que há em tudo.
No fundo o que me fascina é o por dentro, seja das pessoas seja mesmo dos corpos inanimados. Para mim tudo tem um outro lado, que não precisa de ser obscuro mas simplesmente escuro. Como a lua. E a matéria afinal não é só uma, mas três segundo os físicos: a inanimada, a viva e a quântica.
Por isso quando olho quero sempre vêr mais além, porque se o simples acto de olhar assentasse apenas em acontecimentos como a atracção e a repulsa, o antagonismo, estava perante um dilema: se os referidos acontecimentos mais não fizessem do que atrair-se, obedecendo à homogenização, acumular-se-iam num conglumerado sem qualidades, como diria Musil no seu célebre livro "O homem sem qualidades"; se se repelissem entre si, obedecendo apenas à heterogenização, então não haveria matéria.
Sendo assim, quando olho, não vejo apenas, mas crio, e esse acto de crição é que pode ser olhado pelas pessoas mais vulgares, quase todas, afinal, como um acto erótico, no sentido mais vulgar.

sábado, 3 de março de 2012

Foi quando

Foi quando parti por poemas que nunca te cheguei a escrever, mas que li, com muito amor nas rugas aos cantos dos teus olhos, que beijei, quando no exílio fui sendo a pouco e pouco senhor da minha velhice, e do tempo, e deste espaço que trago sempre dentro de mim, mas que é feito de tudo e com tudo o que já senti, e sinto, meu amor, por ti.
Foi quando parti por cartas que nunca te escrevi, ou em que apenas escrevi alguns post-scriptum, com medo de te dizer a verdade, ou o que era mais importante, porque isso me deixaria só, absolutamente só, com a minha nudez de nunca te conseguir saber.
Foi quando um dia te beijei a paz e então me deixei morrer.

Há muito tempo

Há muito tempo, já lá vai mesmo muito tempo, comecei a pintar. E pintei durante alguns anos. Comprei um cavalete, uma paleta e era eu mesmo quem fazia as telas, de uma maneira muito artesanal que já não sei quem me tinha ensinado: um bocado de pano de um lençol velho, umas pinceladas de gelatina para endurecer ao Sol, e uma camada de tinta branca para criar um fundo. Depois pintava o que me vinha à cabeça, tentando juntar côres em geometrias fractais, sem limites definidos, como se fossem nuvens, labaredas, ventos . . . e tentei mesmo pintar o vento e fixá-lo na tela improvisada. Mas nunca consegui agarrá-lo para que posasse para mim.
Depois quando punha na parede o quadro que tinha pintado, ficava a olhar espantado, porque só lá via a mancha que o quadro lá teria deixado, quando dela se tira ao fim de muitos anos para ser restaurado.
E tentava pintar o que isso me fazia sentir. Pintar a mancha e o espanto, pintar o sonho que era isso tudo. Pintar a dor de não conseguir pintar. Mas nem isso consegui. E deixei, aos poucos, de pintar, porque dentro de mim as côres eram muitas e só uma, como a côr da parede onde tentava sempre pregar o quadro. Branca, toda branca, da côr do sonho. Ou da cor dos tubos a secar. Da tela por pintar. Do sonho por sonhar.
Depois, como que a querer imitar o Santa-Rita Pintor, fingi que estava em Paris, que o Sena corria por dentro de mim, e atirei também tudo ao rio, a um rio que era feito de pessoas, de pessoas que passaram e correram pela minha vida e nunca cheguei a saber quem eram.
Depois não me suicidei como ele, mas escrevi um manifesto anti-côr-forma que assinei com uma pintura donde escorria um sonho em forma de lágrima, em forma de canto. Depois deitei-me e tapei-me com ele como se ele fosse o meu sudário. Como se me deitasse com uma Verónica qualquer que também tivesse passado pela minha vida inquieta.
E deixei-me secar, como os tubos das tintas que um dia acabei por abandonar.

Todos os dias

Todos os dias sou assassinado por alguém ou por alguma coisa.
E não resisto. Fico impávido e sereno e apenas me lembro de dizer a célebre frase de César ao ser apunhalado: "tu quoque filli mi!?"
E o César acabo por ser eu, ao beijar Bruto enquanto me deixo acutilar vezes sem conta pelos rufiões da vida.
Pela vida!

E fui-me morrendo

E fui-me morrendo aos poucos, à medida que me fui esquecendo de viver.
E dei comigo a pensar naquela frase de Kierkgaard "se na vida só há morte, a própria morte, não será a morte, por inversão dialéctica, a vida?

sexta-feira, 2 de março de 2012

Escrevi

Escrevi páginas e páginas, no livro das minhas Confissões. Escrevi sobre o tudo e sobre o nada que há em mim, mesmo sem nunca ter sido Agostinho. Escrevi, mesmo assim, sobre como me sonhei a passear em Cartago, e depois a receber a mitra de Hipona. E fui a Roma.
Escrevi até ao cansaço, até à exaustão, escrevi até à dor que se me firmou como uma estaca acerada no meu peito pecador, feita dessas páginas esqucidas, de um livro que nunca abri e onde me confessava de como me tinha perdido por ti.
Depois as minhas confissões fizeram eco, e fui ter com Eco a pedir-lhe que me encontrasse Narciso para vêr se os olhos dele me mentiam. De beleza.
E depois fui a flôr, os lagos, as fontes e esse poço sem fundo onde me perco e sou a dançar nos braços nus das ninfas dos bosques. E dancei o que nunca ninguém dançou.
E confesso tudo isto usando palavras que invento, a escrever com tintas sem côr, nem cheiro, em páginas feitas de vento. Em páginas feitas de mim.
Depois confessei que já tinha sido tudo isso e de joelhos pedi a absolvição, arrependido.
E escrevi mesmo que nunca tinha escrito o que escrevi

Tenho

Às vezes tenho pelas pessoas sentimentos tão contrários, que tanto as amo como as odeio, ou, pelo menos, tanto anseio por elas como tenho para elas um olhar do mais profundo tédio, de desprezo mesmo, de um cansaço que me agonia, me destrói.
São as descontinuidades de que me faço, opostos que comigo cohabitam, e que no fundo me esfrangalham o peito, me partem em pedaços, me atiram pelos ventos, que quando dou comigo, estou a ser pasto dos abutres, que me vão comendo a pouco e pouco as carnes e a esperança, até o sonho, como já antigamente a águia comia o fígado àquele mito que era deus e... continua a ser.

Por mais que

Por mais que eu faça, por mais que me orgulhe do que já fiz, por mais que pense no que ainda vou fazer, tenho sempre esta espécie de sentimento, de que na minha folha do deve e do haver, o saldo é sempre negativo.

Às pessoas

Às pessoas que estão sempre mal consigo mesmas e com todos à sua volta, para quem tudo é um fardo, que passam a vida a dizer mal de tudo e de todos, a essas, tenho que lhes dizer que estou mesmo a ver que um dia destes se baralham e acabam mesmo por só saber dizer mal de si mesmas, sem sequer darem por isso.

Não sei se quando

Não sei se quando te olho te vejo ou se é a mim que eu vejo reflectido nos teus olhos.
Às vezes sinto que me conheço enquanto ao mesmo tempo me sou estranho e que de mim nada sei. Nem quero saber.
Há um tempo que me separa de mim e do olhar com que te olho, sem saber se esse é o meu olhar ou se é apenas uma forma discreta de te dizer o que se passa dentro de mim. De como eu sou.
"Homo sum et a me nihil alienum puto", sou homem e a mim nada do que é humano me é estranho. E é quando penso que nem sequer sou humano. Que nem sequer sou.
Sei, ou penso que sei, que a morte também um dia virá ter comigo e tentar conhecer-me melhor, mas eu não quero acreditar, não quero sequer saber se ela existe ou se ela é apenas uma invenção minha ou uma estranha maneira de amar.
Talvez seja uma qualquer forma de tempo, e esse sim, não tenho dúvidas de que me vai matando lentamente, enquanto te vejo e olho. Enquanto te vou sabendo, assim. Enquanto, não sei quando...