terça-feira, 9 de setembro de 2014

Nunca

Nunca quis ser Fedra apaixonada por Hipólito, filho de meu marido, pois sou do tempo em que no teatro só podiam representar homens e por isso ter que se usar uma persona para mascarar o género.
Mas li com avidez Eurípedes, Séneca, Racine, e tantos outros, procurando sempre encontrar-me naquelas tragédias, tragígrafo de mim próprio, e ser por fim eu próprio a tragédia de não me conseguir encontrar.
A verdade é que prefiro andar eternamente à procura de mim, antegozando sempre esse encontro que no fundo não quero ter.

E penso

E penso em escrever versos à maneira de Alceu ou de Safo, de Lucílio ou de Horácio. Debruçar-me sobre a vida e sobre o amor, que sei serem ambos tão passageiros, mas sem deixar de sentir, no entanto, a chama abrasadora da criação, que me queima por dentro ao dizer-me, num murmúrio que só eu oiço, que é pela vida e pelo amor que aceitarei algum dia morrer. Serei então eu, e poderei dizer que vivi, embora com uma pena de mim, insistentemente agarrada a mim, e que me repete até à exaustão que " para tão grande amor, tão curta a vida".
E deixo-me adormecer nos braços de um Morfeu qualquer, envolto numa espécie de volúpia de sofrimento ou de gozo, ao tomar consciência que adormeço para nunca mais acordar.
A morte pode ter destas coisas: ser, por retorção dialética, vida.

domingo, 7 de setembro de 2014

Depois

Depois juntei o mundo aos meus assombros, como num subtil encontro de sombras. E olhei-te os olhos, e pareceram-me lagos, onde se podiam reflectir os meus desejos e as minhas tristezas, os medos, os amores e esta obsidiante incerteza que me apunhala o peito e o sentir, só por não saber de quem são as mãos que seguram o punhal que me assassina.
Depois tentei juntar os afectos, mas vi que foram os afectos que se juntaram no teu rosto, onde fui encontrar o sorriso que as minhas mãos te foram dando. E beijei-te esse sorriso.
Como Anna Arendt, discuti sempre comigo a banalização do mal. E o mal, perdoando tudo o que me fizeste sofrer quando me cravaste o punhal com que me assassinaste o sonho de te continuar a sentir.
E no tempo em que o tempo me dava tempo e não andava sempre a correr atrás de mim e a querer, por tudo e por nada, que houvesse tempo, e eu o sentisse, feito de dias e horas, e momentos, para que o encontro e o reencontro com o  tempo fosse apenas um estar.
Hoje o tempo passa por mim como uma estrela cadente, e quando vou a reparar nele já ele passou e me deixou a amarga sensação de mais uma vez o ter perdido.
Quando era pequeno, o tempo era uma estrela fixa no nada, e onde a terra girava à volta dele, e eu, fazendo-me pensar que me tirava a sombra e as sombras a tudo para que eu olhava, fantasmas recortados no medo de que o amanhã já não viesse ou viesse cedo de mais, sem me avisar, e me apanhasse desprevenido. E a sombra do tempo caia-me em cima, com força e brutalmente, e magoava-me os ossos, apertava-me o peito ao ponto de me fazer sentir falta de ar, ou perdido no meio de um mar, sem rumo nem quaisquer referências.
Foi quando tentei desenhar meridianos, paralelos, tirar azimutes, usar um sextante que ia a pouco e pouco inventando, mas que o tempo me tentava tirar das mãos, enrodilhando-me feito vento, para acabar por me fazer perder, de mim, de ti meu amor, por entre cores que nunca tinha visto e sons que nunca tinha ouvido, num infinito de sentires, de que não conseguia desenhar as sombras que de mim fazia o tempo.
E ansiosamente procurava alhear-me do tempo, da morte, do fim, para poder viver apenas num sempre eterno presente, que eternamente fosse um retorno ao momento, em que os nossos olhares se cruzavam, sem noites e sem dias no calendário da vida nem no calendário da morte.
Senti então que havia em mim um espírito que tudo envolvia, e me fazia sentir matéria, perceber-me matéria, essa substância de que tudo é feito menos eu, e tu.
Depois entrei numa igreja onde um organista tocava Bach e me fez sentir não ali, naquele momento, ma, depois. E não ouvi mais nada, porque o que poderia ouvir, me obrigava a esperar por depois.

Entreguei

Entreguei o meu sorriso ao teu, e fundiram-se, tornaram-se um. E senti que tudo tinha mais alguma coisa de ti em mim e mais alguma coisa de mim em ti. Como naquele Kuan indú de que li partes na minha adolescência, sempre apaixonado por tudo e por ninguém. E nasci para um outro mundo, onde eu não estava sozinho nele, nem ele se sentia sozinho em mim. Éramos um.
Não me arrependi, antes pelo contrário; senti-me invadido por um profundo sentimento de gratidão, porque o tempo em que me fui, passou nesse momento a ser o tempo em que nos fomos, distraídos da vida e até mesmo de nós, como apenas dois seres feitos só de memórias, e da memória do beijo que não nos demos.
Depois meti no bolso esse teu olhar azul verde, embrulhado no lenço já molhado pelas lágrimas que chorei e choro sempre, só por pensar que um dia te posso perder.
Pensei que era a eternidade que passava por mim e me vivia, mas aquele momento deu-me a dimensão certa do que na realidade sou ao sentir tudo isso, a que não sei dar nomes, mas perpassa por mim e por nós, como se fosse apenas uma corrente de ar entre as janelas do tempo que abrimos nas noites do nosso Verão.
Sei que quase sempre a vida me leva a atirar para longe os meus e os teus actos, como que a não querer que continuem nossos e deixem o caminho aberto aos que estão para vir, e também precisam de lugar, de espaço. Às vezes penso que nos recusamos a vê-los, e se os vemos, sentimos logo o impulso de lhes trocarmos a responsabilidade de os termos feito, pelo arrependimento.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Vozes

Oiço vozes, sem conseguir perceber de onde veem. Fico parado, atento, expectante. Oiço coisas que me parecem vir de lugares que não encontro. É possível que apenas seja só eu a conversar com as minhas fantasias
Mas oiço vozes que veem bem do fundo da terra acabada de arar. Vozes que são a forma que encontro para ver uma árvore a nascer. As raízes enterradas a pouco e pouco vão sendo tronco, e ramos, e folhas, enquanto tu e eu começamos a subir, a subir até à copa, onde então nos abraçamos, beijamos, nesse espaço que é nosso, muito nosso, só porque o inventámos.
Depois damos as mãos e vamos passear juntos pela cidade, como por um corpo, como pelo lugar de um corpo, como por um olhar, ou um sorriso, ou um gesto desse corpo.
E passeamos pela memória do que sou, pelas memórias do que somos, e é assim que vamos criando os nossos próprios ídolos a partir de ideias e de conceitos que fomos encontrando, ostracons de nós mesmos, cacos das estátuas que fomos descobrindo e esculpindo nas pedras enormes que há  por dentro da nossa relação. Criámos depois o espanto de nos encontrarmos em tudo isso, em todos esses cacos de que também fazemos cores e sons, numa sinfonia incompleta, tal como nós vamos vivendo a nossa incompletude.
Não é importante o lugar onde estamos, porque todos os lugares para nós são simbólicos, porque em todos eles nos encontramos e desencontramos, neste vivermos esta história inútil. Apesar disso não há em nós fracassos nem tédios, nem nunca a vida nos aparece cinzenta e sem graça, mesmo quando os lugares são os loculi , esses nichos nas paredes das cavernas onde os antigos costumavam sepultar os seus mortos.
E quando penso e te digo que um dia a morte acabará por nos separar, sinto bem como essa morte será apenas o pouco que do nada há-de sobrar, dos beijos que nos demos e dos que ficaram por dar, do que nos dissemos e do que ficou por dizer, do dia a dia que vivemos e dos espaços que ficaram por preencher.
Sempre que perdi a minha sombra foste sempre tu quem a encontrou e ma devolveu. Foste sempre tu, mulher de onde a vida brota, que me ensinou a compreender que o princípio e o fim são um só, já que o viver e o morrer são um acto único porque a vida só se renova com a morte.
E devotei-me a transformar-me e ser um simples ramo pensante da árvore primordial, tão submisso como eu aos ventos do espírito.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Escrevi em 30/05/1980

Não sei porque te beijei naquela noite. O vento corria como um louco pelos quatro cantos da casa, e a chuva parecia que me caia nos olhos, nos ossos, nos nervos, em tudo o que me fazia sentir, sentir-te. Não sei, não sei porque te beijei naquela noite, em que os nossos olhos procuravam outros espaços, mais vazios, de nós, inquietos por estarem abraçados pelos montes ou pelos mares onde mais nada houvesse senão montes e mares.
Não sei, verdadeiramente não sei. Senti-me num deserto, à meia noite, a ouvir os gritos das pedras a racharem com o frio, e o soluço de algum beduíno abandonado pelo melhor amigo, e, envolto também eu na minha djelaba cor de sonho, sentei-me nas areias da praia já nas margens do deserto, e deixei-me embalar pela música das ondas a rebentar, atrás umas das outras, como os meus desencantos, e encantos que por ti nunca morriam, e que iam também rebentar nas praias do meu peito sem contornos nem fim, que eu abria, te abria, cada vez mais à noite e às estrelas, numa ambição imensa de partir para o espaço que eu fosse capaz de inventar, e ir à procura de paz e de silêncio, da paz e do silêncio que só dentro de nós existia.
Não sei porque te beijei, mas olhando para as linhas das minhas mãos abertas, descobri destinos que não entendi, e vi-me a mim mesmo, muito junto a ti, num beijo sem destino, mas que ia à procura de nós.
E então sim, soube porque te beijei, meu amor, meu amor, só porque te amo, desmesuradamente, e porque desse amor faço um destino, um sonho, um espaço onde só cabemos os dois, um silêncio todo nosso, e . . . um beijo.

(e hoje, depois de ter encontrado este texto, e sem saber porque to terei escrito naquele dia, continuo sem saber porque te amo, só porque o nosso beijo continua bem vivo, e sem tempo, a caminho do não sei.)