domingo, 27 de novembro de 2011

Também

Tmbém às vezes dou comigo à espera do Encoberto. Mas ele morreu, todos me dizem. E desde esse tempo ficou dentro de mim uma ilha donde nunca mais consegui sair.
Apetece-me gritar de raiva, acordar os outros e dizer-lhes que serem pessoas não é andarem de fato e gravata, e com os sapatos engraxados.
E continuo à espera de D. Sebastião para que me diga que ainda há areais para atravessar antes de morrer de vez. Se calhar é uma outra maneira de eu fugir à solidão. Ou de tentar fugir da ilha.
Então acordo e levanto-me, num sonambulismo onde o sonho fica sempre por sonhar. E fico com a sensação nítida de que quando nasci ainda não tinha nascido. À Senhor de La Palisse? Não, não é bem isso. Já tinha era morrido quando nasci, é isso. Ou não?
E cá me vou fazendo dos dias que me deram, e escrevendo estas coisas, como se escrevesse um diário. Mas sem datas, sem dias, sem tempo. Assim fico eternamente na dúvida se o que escrevo me fez estar presente ou ausente desses meus dias. Desses dias que me deram mas de que me lembro perfeitamente não ter aceite. E desde daí, comecei a viver sem dias à espera de D. Sebastião.
E nunca mais pus fato, nem gravata, nem engraxei os sapatos. Vesti uma cota de malha, agarrei num elmo que por ali estava caído na areia, pus os guantes e montei um cavalo todo branco e ricamente ajaezado. Com a espada fiz o sinal da cruz e nunca mais voltei.

Na tropa

Um dia, estava eu na tropa, em África, e ouvi alguém a dizer que um homem nu é como um balde de merda.
Não percebi. Sempre houve coisas na minha vida que ouvi mas não consegui perceber.

Freud

Nem tudo o que Freud disse me fez sentido, mas numa coisa concordo: as pessoas passam a vida aflitas e angustiadas, tentando alhear-se da sua sexualidade, num quase terror que não confessam a ninguém de se descobrirem a ser exactamente o que são.
E neste infinito momento, que é a vida, a correr por mim, devagar e a ser lamento, a caminho nem eu sei donde, fixo os meus olhos nos teus e sinto como somos tão diferentemente iguais.

Às vezes

Às vezes tenho que fazer festas a mim mesmo, como se me consolasse por ver passar por mim tanta gente que não me abraça. Nem me olha. Não dá por mim, sequer.
Arranjo-me, penteio-me e ponho uma água de colónia suave, como se fosse sair a procurar alguém que desse por mim e me olhasse. Se enternecesse comigo e me desse um sorriso para eu levar para casa, como se fosse um doce e guardasse para depois o saborear com uma chícara de chá bem forte.
Vou ao espelho e ensaio um certo sorriso  -  e lembro-me de Francoise Sagan  -  enquanto depois fecho a porta e desço as escadas. Já na rua olho distraidamente atento para tudo o que me rodeia e por onde vou passando. Sento-me depois num banco de jardim e apanho sol. Depois acabo por me enfadar e volto para casa, outra vez sozinho comigo, com o coração rasgado e a bater descompassado por não ter encontrado um personagem para a história que me vou contando sem saber que já a escrevi há imenso tempo e que já nessa altura tinha encontrado um.
Sento-me no sofá da sala e olho com esse meu olhar distraidamente atento, para os quadros que tenho espalhados pelas paredes. Eles também são histórias. E sinto-me a parar no tempo, com eles, à medida que vou olhando para eles, um a um, e a ser desse tempo, do tempo deles, como um som que se perpetua pelos vales da minha memória já cansada de tanto me tentar lembrar de mim, quando eu era outro e nunca me sentia só.
E sinto-me traído pelos anos, pelo tempo, com esse tempo com quem, confesso, nunca tive uma boa relação. Sei que a pouco e pouco, insidiosamente, os anos foram dando cabo de mim, entre sorrisos e  graçolas, como se alguma vez tivéssemos tido uma qualquer relação de amizade. Fui iludido, e a verdade é que mais cedo ou mais tarde todos acabamos por ser iludidos, e é de ilusão que acabamos por morrer.

sábado, 26 de novembro de 2011

Todos os dias

Todos os dias, quando me levanto e vou até à janela do meu quarto ver como está o dia, começo por me enternecer com as árvores, com as plantas, e se o dia está fosco, a tristeza invade-me, como que me sinto só e abandonado pela vida. Mas se o dia está bonito, radioso, como que nasço e renasço ao mesmo tempo, numa quase multiplicação de pães ou de sentimentos, porque o Sol dá-me vida. E as cores do quadro que costumo pintar todos os dias são fortes, alegres, capazes de fazer nascer outros quadros, outras sensações, outras alegrias.
Todos os dias, quando me levanto e vou até à janela do meu quarto, agradeço a Deus poder ver as árvores e as plantas, e agradeço poder sentir as cores como se fossem pedaços do meu sorriso. E do teu sorriso. Porque sem o teu sorriso eu não conseguia ver nem as árvores, nem as plantas, nem esse teu sorriso que me dá mais vida do que o Sol. O teu sorriso não tem a ver com o dia que faz, tem a ver com o olhar que nos damos, tem a ver com o amor que nos temos.

Falido

Sinto-me cada vez mais falido. Não só  -  mas também - porque me sinta com mais ou menos dinheiro nos bolsos. Com isso, ou sem isso, vou vivendo, mas é porque sobretudo me sinto a ter cada vez menos ideias, para dar uma volta neste mundo tão vazio e tão hipócrita. Tão pequeno!
A minha falência é essenssialmente interior, é uma falência de espírito, é o não conseguir arranjar maneira de suportar a pequenez que me rodeia. Que me asfixia.
É verdade, cada vez tenho menos ternura na carteira e beijos para dar, nos bolsos. Cada vez mais o Banco dos Sentimentos,  me dá menos crédito. Quanto vale hoje em dia, um sorriso, um beijo, um abraço? Tem-se vindo tudo a desvalorizar tanto, imenso! E quem guarda esse tipo de valores nos colchões lá de casa, sabe que nenhum seguro lhe cobre o fogo que os fizer arder nem ao dono que, com o incêndio dessas preciosidades, acabe por morrer de frio.
Qualquer Banco dos Sentimentos acha que só um louco varrido quererá guardar esses valores num cofre que lá queira alugar, e portanto não muito digno de confiança. E infelizmente tem razão. Eu sou um dos que só pode guardar lá disso. Cada um tem o que tem e por isso estou falido. E ainda se eu fosse um louco varrido para debaixo de um Aubusson, ou de um Goblin, de um bom e bem antigo Arraiolos ou de um colcha de Castelo Branco que tenha estado na cama de uma abadessa aristocrata . . . Mas não, o que eu tenho guardado num cofre que trago sempre dentro de mim, já não vale nada.

Artigos

Acontece-me imensas vezes ler artigos e apetecer-me escrever a contradizê-los. Mas a contradizer o quê? Na maior parte das vezes não me chegam a dizer nada! São apenas palavras e que nem sempre chegam mesmo a estar arrumadas de forma a poderem ser lidas e percebidas.
Rasgo a folha do artigo, amachuco-a e deito-a para o lixo apenas com a preocupação de que seja no caixote de reciclagem para papel.
Afinal são como certas pessoas com quem me cruzo na vida. Só que muitas delas já nem para serem recicladas servem.
Lixo orgânico, para talvez adubaram um dia uma planta qualquer.

O abismo

Deixo-me espalhar por mim, como se fosse água a entornar-se, num mar imenso e sem fim.
E é assim que me vou alongando, afastando, desta última margem de mim, à medida que me vou desencantando e diluindo na distância, que há sempre de mim para mim, e me faz andar sempre à beira do abismo, atraído pelo abismo, e me faz pensar que eu sou apenas o mar do outro lado de mim, esse mesmo  abismo.

Separo-me das Pessoas

Quantas vezes ao longo da minha vida me tenho separado das pessoas. Perco-as, deixo-as fugir de mim. Ou então sou eu que fujo delas. Nunca percebi.
Não quero dizer que me esqueça delas, mas como que ensurdeço, e ao deixar de ouvir, de as ouvir, deixo de as sentir. E fico assim, como que perdido, a vaguear sem sentido, sem norte, numa espécie de recordação que depois fico sem saber o que é.

Às vezes

Às vezes tenho pena de já me sentir velho, e a sentir em mim a patine das coisas antigas, com história. E sou uma qualquer coisa por quem o tempo vai passando, e em que que o vento vai esculpindo, um outro de mim, cheio das história que já vivi, e que ao serem minhas, sou eu nelas o tal personagem que anda sempre à procura de uma história para contar.

Sei que sou

Sei que sou muitas vezes difícil de entender, até de me entender, neste grande mistério que trago comigo, de que me faço e vivo, e que não se cansa de me perguntar quem sou.
E alimento dessa maneira a busca que não me canso de fazer de mim. E se me canso, às vezes acontece, realizo que nunca posso chegar a conclusão nenhuma porque sou o mistério do meu próprio mistério de ser, e de ser em mim.
E é quando acabo por saber quem sou.

Como

Como já disse numa outra ocasião, nem sempre estou de acordo comigo. Chego mesmo a cortar relações comigo.
Depois troco os nomes às coisas, até mudo de tom de voz, e vou à procura das coisas, doutras coisas, mascarado de outro, como forma de continuar a ser eu. Ou de ser outras coisas.

No espaço

No espaço fechado em que me sou, com esta pele, estes músculos, estes ossos e estes nervos, sinto-me um pouco como um pintor, para quem o que vai pintando se vai prolongando para além da tela.
E dou comigo a passear-me no vaazio de me ser, assim, eterno pintor sem saber nada do que é que está a pintar.

Lembrar

Não me querer lembrar de certas coisas, é a forma que encontro de as matar dentro de mim.
Mas ao matá-las, como fazem parte de mim, acabo por ser eu a morrer. E assim dou comigo a pensar que todos os dias me mato um pouco para conseguir continuar a viver, mas a viver a morte das coisas que eu não quero viver. E sou sempre eu nesta procura de saber onde é que afinal as coisas dentro de mim principiam e acabam vivem e morrem.
E não me quero lembrar.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Continuo

Continuo sempre a escrever um livro, em que sou a história, o enrredo, as próprias folhas onde escrevo, e a tinta, que nunca sei me escorre dos olhos, se da vida.
Sei que nunca vou querer acabá-lo, porque, é um segredo, nunca cheguei a começá-lo.
A ideia, no fundo, é escrevê-lo depois de mim, quando eu já não fôr, e de mim só reste mesmo, uma história que não escrevi.

Pequeno poema

Rasguei os versos de vento
Quando te olhei a tristeza
E me senti ir por dentro
Da minha própria estranheza.

Senti depois, em ti, o momento
De quem só vê pesadelos
Estranhos de ti e de mim
Nos versos feitos de vento
Que me levaram pelos montes
Feitos deste meu lamento
De me aproximar do fim
E encontrar-te.

E chorei

E chorei a minha própria morte. De ti. Na invenção que de ti fiz, ao querer inventar a forma de não te perder. Nunca. De não te esquecer. Nunca.
E não quiz que ninguém tivesse pena de mim. Todos morremos todos os dias, até que um dia morremos de vez. Embora, mesmo assim, pense que hei-de ter o prazer de morrer por partes:
1º quando me despedir do mundo, e deixar de lhe falar e
2º quando a recordação de mim morrer nos outros.
Então morro, não de velhice, mas de esquecimento. De esquecimento de mim, deixando-me arder como se fosse uma vela, que até ao fim, vai dando luz e vai morrendo.
Depois pus-me à escuta, para ver se percebia o que me esperava do outro lado de mim, daquilo que eu tinha medo que me acontecesse. Ou pençasse que me podia acontecer. E começou para mim a ser claro que nem a morte dura para sempre. Nisso não é nada diferente da vida.
E é entre as alegrias da vida e as tristezas da morte, que então vamos durando, mesmo quando já de novo transformados na terra de onde viemos. E chorei sem saber porquê.

Otomanos

Diziam os otomanos que não se podiam esconder três coisas:
O amor, a tosse e a pobreza.

E as pessoas

E as pessoas batiam às portas do meu sentir, como que a espantar espíritos, como quem rufa tambores e escuta o som a repercutir-se pelos vales da mágua, pelos lôdos dos pântanos, pelos olhares em desespero. E todo eu fui tempo, num relógio de sol já sem a haste a projectar a luz, ou uma clepsidra sem areia, que só à noite eu via reflectida pela luz da lua a entrar pela janela das minhas ansiedades.
E senti vontade de não viver mais, já que desde que tinha nascido, me tinha sentido a começar a morrer.
A verdade é que me ia a pouco e pouco cansando de viver a atravessar o tempo. E se vivi muitos dias, também morri todos os dias, numa alternância de noites e de dias, em que se nasce e se morre sempre a caminho do fim. De um fim.
E não me deixei ficar em mais sítio nenhum, disperso como ia ficando pelos sítios por onde passava, me arrastava, deixando cair, aqui e ali, bocados de mim. Foi quando dei comigo, a vêr que as cores dos olhos mudavam conforme os olhava, e acabava por não conseguir vêr mais cores nenhumas, porque os olhos desapareciam como luzes que se afastavam e iam ficando cegos.
E até o vento parecia vir ter comigo já cansado de se enrodilhar nas cores e nos sons dos tambores a rufarem num longe sem tempo nem distância.
Então levei a noite comigo, embrulhada num cobertor de mim, como se levasse comigo um filho recem nascido, ou a dor de o ter perdido. Esquecido. Por uma memória sem lembranças, sem referências, como um relógio de sol já sem a haste. Perdido num jardim barroco abandonado pela alma do tempo.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Terra

É na terra, ao remexer na terra, que encontro tudo e me encontro em tudo. É na terra, que tudo alimenta, que nela nasce e renasce, tudo. Do que ela deu para alimentar a Mãe que me pariu, ao nascer para ela, porque voltarei para ela, para a alimentar de mim, e voltar a ser outro, um dia, nela.
É na terra que vivem os espíritos, nos lagos e nos rios, nas árvores e na relva das pradarias, e no vento que pode encapelar as águas dos mares e abanar as florestas. É no cantar dos pássaros que eles habitam, nas lamas das margens dos rios, nas areias das praias e dos desertos, no relinchar dos cavalos a pastar nas montanhas, nos gritos das mulheres em parto. Porque tudo é terra. E ela está sempre em trbalho de parto.
Os espíritos vivem sem precisar de viver. São, apenas. E quando lhes sorriu, sei que nos entendemos e que juntos sonhamos coisas, que só um ao outro somos capazes de dizer.
E é por eles, pelas histórias que me contam, que eu sei que a vida não acaba na morte, porque só acaba quando os outros nos esquecem. Aqui na terra.
E então protejo-me da morte nos silêncios que faço, para poder estar com eles, e fujo dos tambores que a rufarem os acordam e afastam, porque se assustam, habituados como estão ao silêncio e os fazem ir para outras terras.
E deixo-me ir com o vento, que me dá forças, me alimenta e faz viver, ao fazer-me respirar, andar, dizer coisas que me confortam, neste meu egoísmo, e me fazem olhar para tudo o que é belo, e fazer amor com tudo o que amo, e sentir-me confiante ao saber que todos eles esperam por mim, com paciência e amor. E com todo o tempo do mundo. Com todo o tempo da terra.
E pus-me a ouvir o 2º andamento da sonatina para piano de Schubert, e depois, já mais calmo pus-me a ouvir o 2º concerto de Serguei Rakmaninov, que ele dedicou ao seu psiquiatra pela ajuda que lhe deu para sair da depressão profunda em que ficou após a estreia desastrosa da sua 1ª sinfonia. E senti-me mais com os pés na terra.

Lord Byron



"Como são sempre frágeis os luxos deste mundo
Que o tempo em seu caudal arrasta para o fundo".

Lord Byron

sábado, 5 de novembro de 2011

E...

E acabo sempre por ir ter comigo, onde quer que eu esteja. Descubro-me sempre.
O que às vezes acontece, é que me choco com esse tudo que encontro, e depois perco-me, outra vez à procura de mim, sempre na esperança de me encontrar.
E encontro, só porque de mim até mim, é apenas um passo, um gesto, um beijo que tenho sempre para te dar.

Ler

Tenho a mania que sei ler, só porque leio livros, e junto letras e palavras.
Mas não consigo juntar sentimentos, olhares, sorrisos, gestos de amor ou beijos.
E isso faz-me sentir a necessidade urgente, de por fim ir aprender a ler, a sério.

Uma espécie de poesia

Rasguei os versos de vento,
Que teci com o teu olhar,
Quando te olhei a tristeza.
E senti-me todo dentro,
Deste meu pobre pensar,
Na minha própria estranheza.
Senti em ti, depois, o lamento,
De quem só vê pesadelos,
Nos sonhos que tem por sonhar.
Estranho de ti e de mim
Aproximei-me do fim
E encontrei-te, sedento.
E foi quando te pude beijar.

Comecei a subir

Comecei a subir a montanha à procura de mais luz. De um outro silêncio. De uma outra paz. De tudo o que me ajudasse a carregar a minha cruz. E caminhei horas e dias, e caminhei tempos de um tempo que já nem sequer era um tempo deste tempo, e por isso já nem sequer era o meu. Ia a fugir do mundo, confesso, e de tudo o que me atormentava e não me deixava viver. Ia a fugir de mim. E o céu estava cada vez mais perto, e o azul, e a luz. E o deserto. E eu, sempre a fugir de mim.
Já Goethe, ao morrer, tinha pedido mais luz (mehr licht). E também foi Goethe que disse um dia que nenhum homem pode fugir de si mesmo. E eu a acreditar que sim mas a fingir que não.
Continuei a subir a montanha, com aquela ideia obsidiante de um provérbio zen que diz "quando chegares ao cimo de uma montanha, continua a subir".
E foi animado desta ideia que continuei a subir, que deixei tudo e continuei a subir, sem pensar em nada, sem me preocupar com nada, nem com o fim da montanha, que afinal era eu, mas só e apenas, preocupado com o fim do meu próprio fim.

Covas

Por mais covas que abra no cemitério do meu sentir, nunca nenhuma delas será tão grande que nela caibam os meus sonhos mortos, nem tão pouco a lucidez com que os sonhei e que agora me fazem ver-me a partir de mim, para longe de todos aqueles que ainda amo. Porque já só de longe os amo. Só de longe os sinto. Porque cada vez mais me sinto longe de todos e de mim.
Depois pensei em fugir, mas começou a acontecer-me como naquela escultura de Gian Lorenzo Bernini, "Apollo e Daphne", e também eu me fui transformando em árvore, e fui criando raízes, e folhas, e troncos, e todo o meu corpo acabou por ser uma imensa floresta de enganos, para poder sentir o tempo a passar por mim, feito aragem a cheirar a maresia, a cheirar a tempo e a terra, a cheirar aos cheiros de todos aqueles que por mim passaram e amei.
E senti vergonha e uma imensa tristeza, e as minhas lágrimas foram toda a mágua de que o meu corpo é feito, e correram sem sentido nem destino pelo meu olhar em espanto. E continuei a abrir covas já sem saber para quê, como que apenas para vasculhar o mundo e nele conseguir encontrar um sítio seguro e belo onde por fim possa guardar a minha dor.

Nasci

Nasci já morto, de fome e de solidão. Só o vento me trouxe uma espécie de silêncio, como se fosse um beijo, que senti, ouvi, bebi em pequenos sorvos, lentamente, quase esquecido de tudoe até de mim.
Só mais tarde, a chuva que caía naquela tarde, me disse para não ter esperança nenhuma, nem fé nenhuma, para não ter nada, de nada, e me poder assim esconder de mim dentro dos meus pensamentos. Ou dos teus, continuo a nunca conseguir lembrar-me.
E continuou a chover, e a molhar a pouco e pouco, as raízes dos meus pensamentos, e depois fui folha, e fui flor, e acabei por ser um fruto amargo que nem eu consegui comer. Era um fruto a que dei o nome Vida, mas sem saber, passei depois a chamar-lhe Além.
Foi quando os meus ossos procuraram outro corpo e os meus pensamentos procuraram outra maneira de pensar.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Ao longo da vida

Ao longo da vida já me fui perdendo de algumas pessoas. Ou elas se perderam de mim. De umas ainda me lembro, mas doutras já me esqueci. Às vezes venho a saber que já morreram, e nessas alturas fico com pena de nunca as ter podido conhecer melhor. Ou de nunca as ter conhecido. Enfim, mas é a vida, ou é a história, no seu constante escrever-se e reescrever-se em pequenas outras histórias que afinal cada um de nós acaba sempre por ser. Ou já ser e ainda não.
E vou-me inventando quotidianamente, na esperança, às vezes desesperada, de me poder reinventar ad infinitum, e não morrer. De inventar a própria morte, para então poder viver.
Mas a questão pôe-se-me então, em procurar saber com toda a certeza e exactidão, o ponto de encontro entre a morte e a vida, entre o ser e o não ser a minha própria maneira de encontrar outro caminho, de me encontrar noutro caminho, e inventar ou reinventar outra vida. Outro eu. E vou-me preenchendo de mim, enquanto me disfarço, me mascaro, me disperço e me desfaço, dentro de mim e dos outros. Sim, ao longo da vida vou sendo outros. Os que trago sempre comigo, guardados nos meus bolsos remendados, de tanto os tentar agarrar, para não fugirem.

Benedetto Croce.

Benedetto Croce foi quem me fez começar a sentir o belo. Acho que sei que já o pensava, mas não o percebia. E comecei a imaginar como me poderia transcender e ser arte. Mas fiquei apenas dentro deste meu olhar vazio, à espera que alguém me quisesse pôr num museu, para depois as pessoas poderem lá ir ver-me, e interpretar-me.
Mas só consegui mesmo ser arte, quando me consegui ser eu, e não me importar nada com isso.

Invento

Invento a minha liberdade só porque preciso dela para me inventar. Sem me sentir livre não posso prometer nem trair. Fico como o burro de Buridan. E é nessa ltura que como o poeta dizia "crio desumanidades",


Nunca descubro as coisas. Encontro-as. E por isso leio e releio as mesmas letras, as mesmas palavras, os mesmos pensamentos, mas sempre em livros diferentes. Sempre com interpretações diferentes. Sempre como se eu próprio fosse sempre diferente, ao lê-las.
E quando me volto a encontrar, então sim, sinto que descobri alguma coisa escondida por trás de uma palavra, de uma frase, de um pensamento, em que me perco outra vez, num anonimato de uma SA qualquer, mas que sou sempre eu e um mais alguém que trago sempre comigo, até bem dentro de mim, mas que nunca chego a conhecer.

Meto-me pelas cidades

Às vezes ponho-me a andar pelas cidades, pelas vilas e até pelas aldeias do meu pensar. Mas nunca soube bem à procura de quê, nem porquê. Meto-me por praças e betesgas, por becos sem saída e por azinhagas dos arredores onde antigamente se era assaltado, e vou apanhando coisas do chão, abandonadas, perdidas e sem qualquer préstimo, numa vagabundagem de mim, e vou encontrando nelas fragmentos de coisas que já foram minhas, pedaços de pensamentos de que já me tinha esquecido, e vou formando com tudo isso palavras, e olhares, como se pintasse as peças de um puzzle com que ainda me lembro de ter brincado em criança. E consigo pintar tudo, pintar até os sonhos que nunca cheguei a sonhar. E dou comigo a pintar o teu olhar.
E depois sinto que construo um sonho de que já não me consigo lembrar. E depois sonho tudo isso ao acordar. E depois continuo a andar pelos becos e pelas azinhagas da minha vida por encontrar. E depois, e depois, acabo sempre por me perder nesse beijo que nunca te consegui dar.

Vou vivendo os dias

Vou vivendo os dias sempre agarrado ao livro da minha contabilidade, onde vou anotando tudo o que por mim passa, ora na coluna do deve ora na do haver, sempre na esperança de que depois as somas não batam certo uma com a outra, para eu poder andar a rever esses dias de trás para a frente, como se depois todas as parcelas afinal fossem apenas uma. Ou um, porque sonho é masculino.
Benedictus Aritmeticos, ensinou-me a somar, a dividir, a subtrair e a multiplicar. Mas com muita pena minha nunca me chegou a ensinar nem a sentir, nem a sonhar. Morreu antes que eu tivesse nascido.