sábado, 12 de dezembro de 2009

a cara de uma cara

Tinha uma cara escura, não porque estivesse tisnada pelo sol da praia, mas porque se sentia enegrecido por dentro, como se até fosse uma outra pessoa, tanto por dentro como por fora. Talvez por isso às vezes até lhe custasse falar. Pesava as palavras, sem saber nunca se as devia dizer ou se as devia calar, e, na maior parte das vezes acabava mesmo por não dizer nada, numa espécie de pudor para com a vida, para com os outros, para com ele próprio.
E havia um misto de alegria e de tristeza, um sofrimento que se entranhava e começava a fazê-lo esmorecer, decair, como se lentamente se encaminhasse para a morte ou para uma outra espécie de fim qualquer que ele não conhecia.
Bem dentro de si travava-se uma luta invisível, onde os sentimentos contraditórios se entrechocavam e eram sempre antagónicos, cavando um fosso cada vez mais fundo entre a grandeza que sentia haver na sua alma e a miséria em que se sentia a cair por não ser capaz de expressar fosse a quem fosse o que se passava bem dentro de si. Não confiava nos outros, que achava sempre de uma pequenez sem limites. E todo o desejo não era mais do que um vento que passava, levantava o pó da vida, abanava as folhas das árvores que por ali havia e continuava a sua correria como se fosse uma criança atrás de um papagaio.
E ele deixava-se arrastar nessa correria, nesse rodopio, para se entontecer e esquecer, que a vida era isso mesmo e não o que ele sonhava e guardava, fechada a sete chaves, bem dentro de si.
E, lentamente, como que rejuvenescia, e continuava, teimosamente, a sua busca daquilo que no fundo sabia que nunca mais encontrava.

terra- corpo

Sinto-me preso à terra, abraçado pela terra, como se todo eu fosse uma raiz, que sem que ninguém a veja, me dá vida. Me faz ter um corpo. E começo a pintar o desejo, o desejo de desejar e ser o próprio desejo, e ser, para além de mim, o sonho, com que sonho tudo isso. Nessa altura debruço-me sobre a metafísica do corpo, sobre a ideia de que não tenho um corpo, mas que sou um corpo. E sou terra, húmus, homem.
E fui mais uma daquelas caras, que ávidas procuram alguma coisa, em algum lado, sem saberem o que procuram, sem saberem mesmo quem é que procura o quê. Sabem que querem qualquer coisa, o que não sabem é o que é essa coisa. Uma espécie de Princípio de Incerteza de uma espécie de Werner Heisenberg. Foi quando subi ao monte para me sentir mais perto do céu. Ou de ti? E fiquei com as pernas envoltas em nevoeiro e nunca mais vi os campos, onde me deitava na terra, que beijava, e onde me rebolava e chorava, por não conseguir fazer amor com ela. E lá em cima, no monte, podia tocar na minha dor sem que ninguém me visse, e ouvir a noite e o silêncio, sem que ninguém me ouvisse, e não ser nem da agua donde vim, nem da morte para onde me vou encaminhando, nem sequer da vida que me dá a mão, que beijo com toda a ternura e sofreguidão, parte desse corpo de terra que se me larga, caio desamparado no vazio de mim, e é o inferno.

domingo, 6 de dezembro de 2009

reflexões

" O nosso grande erro é querer encontrar em cada um, em especial, as virtudes que ele não tem e desinteressarmos-nos de cultivar as que ele possui".

ou

" Um homem que lê, ou que pensa, ou que calcula, pertence à espécie, não ao sexo, e nos seus melhores momentos escapa mesmo ao humano".

ou

"... tenha chegado àquela altura da vida, variável para todos os homens, em que o ser humano se abandona ao seu demónio ou ao seu génio e segue uma lei misteriosa que lhe ordena que se destrua ou se transcenda".

ou

" O que perturba e alarma o homem não são as coisas, mas as suas opiniões e fantasias acerca das coisas". (Epicteto).

ou

E a paz para mim não foi nunca não estar em guerra, porque, de uma maneira ou doutra, sempre estive. A paz tem sido sempre, afinal, apenas o desencontro de mim, entre dois combates, por mim.

ou

Não dormi nada esta noite. Uma insónia, ou porque alguma coisa me pedia que pensasse. E ao voltar a mim, voltei à minha Ítaca interior, onde a minha adorada Penélope, nunca tinha desistido de mim, nem de me tricotar um agasalho para o frio da minha velhice, para a minha solidão. Então voltei a adormecer, agarrado a ti numa imagem que me foi mais querida que a Beleza.

ou

Olhei para mim e não me reconheci. Senti-me estranho, outro. Nem aos meus próprios olhos eu parecia existir. Só alguns amigos, ou que eu pensava que o eram, - continuo a errar na escolha, tantas vezes - , é que me diziam que eu era eu, exactamente porque duvidava de mim, como se calhar também duvidava deles. Foi quando me encarei, bem de frente, cara a cara, como se fosse um espelho de mim. E perguntei mil vezes, a tudo e a todos que por mim passavam, e à imensidão do mundo, perguntei até aos anos que eu já tinha vivido e ao que penso serem os meus limites. Perguntei ao meu passado, cheio de tantas coisas, mas que no entanto não estava suficientemente cheio nem pesado, que me esmagasse as perguntas. Que me esmagasse. Acabei por perguntar ao vento, notícias de outros lugares, de outras gentes, perguntei ao sonho e até perguntei a Deus. E aí, quando falei com Ele é que percebi que, para me realizar, para conseguir o sonho impossível, muito provavelmente, tinha que morrer primeiro