sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Todos os dias

Todos os dias deito para o lixo uma quantidade de e-mails que recebo na minha caixa do correio, ou porque são repetidos, ou porque não me interessam minimamente, ou porque muito simplesmente não tenho tempo para os ler.
Mas há muito mais coisas que todos os dias deito para o lixo, não porque me ocupem espaço, mas porque preciso da minha existência desafogada, da minha própria existência.
Depois todos os dias vou acumulando não-existências de que vou então fazendo a minha própria existência. E todos os dias deixo de existir.

Miguel de Unamuno

Miguel de Unamuno, numa carta a Manuel Larangeira, dizia que Portugal era o País mais provinciano da Europa.
Além de parecer que nunca mais conseguimos sair de uma aldeia primeva, escondida "entre as brumas da memória", há em nós um analfabetismo intelectual muito grande, o que me faz pensar que mesmo sabendo já ir juntando umas letras não lhes sabem o sentido, só lhes conhecem a forma e às vezes mal.
E eu acabo por me sentir a viver uma geometria complicada, que não me deixa perceber de que lado da vida é que estou, que tipo de sombra o mundo me faz, ou como rebato os planos da minha visão do mundo.
E volto a pegar no "Do Sentimento Trágico da Vida", e penso que Unamuno tinha toda a razão.

Quando

Quando era pequeno, mais novo, todas as pessoas à minha volta eram grandes e velhos e eu olhava-os como quem olha para o palco de um teatro, e o vê cheio de figuras a representar uma peça qualquer, de que nunca percebia o enredo.
E sentia que apesar de ser pequeno e novo e de não saber muitas palavras nem como as juntar, eu tinha muitas coisas para dizer àquela gente toda, só que estava convencido de que nunca me entenderiam nem sequer me ouviriam.
Mais tarde, quando já era mais velho, voltei a sentir-me assim, só que vi que o palco estava muito mais vaziu, com muito pouca gente, e eu também tinha muito menos coisas para lhes dizer.
Não havia ninguém a fazer pantomimices, e embora eu já soubesse e percebesse muito mais palavras,   os gestos, as lágrimas e as gargalhadas, que aquela gente dava no palco, pareciam-me muito mais falsas. Tinham o olhar parado, vago, e pensei em Virgílio Ferreira quando dizia que a inteligência é algo que se vê nos olhos. E os olhos delas não deixavam transparecer coisa nenhuma.
E percebi cada vez mais que toda aquela gente estava como que a querer convencer-se de que tudo o que dizia estava certo, e que tudo o que fazia era correcto, porque estavam a representar um papel que não era o deles, e sabiam-no, mas o que os outros, o mundo, lhes tinha dado para decorarem e fingirem que era o deles. E assim se iam deixando viver, a encolher os ombros.
E eu de facto cada vez mais me convencia de que este mundo é um fingidor.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Um dos meus lados e o outro.

Um dos meus lados é mais falador ; o outro é mais contemplativo.
Oiço tudo o que me quiseres dizer, contar, e fico muitas vezes a chorar por dentro, para que ninguém me veja a chorar. E é calado que te digo sempre tudo isso.

E tenho um imenso cuidado com o que desejo, como te desejo, porque muitas vezes consigo o que quero, e há como que uma competição a desenrolar-se dentro de mim, num eu-tu desejado, sendo que sou ao mesmo tempo o palco e o espectador, o vinho e o bêbedo, amortalhado, não sei se de sono se de sonho, num vinho que inventei, só para te dizer um segredo.

O que me custa muitas vezes não é ouvir-te, mas ser capaz de me ouvir nas palavras que tu me dizes e depois sentir-me atirado para um degredo qualquer, nos confins de um mundo que trago sempre comigo, e que é meu, mas também teu, para na solidão sofrer tudo o que não consegui ouvir de ti.

E vou à boleia de um vento, que não é só nosso, mas está fundido, enrodilhado com os outros ventos que por nós passam e ateiam um incêndio em que me sinto Nero, a deixar que tudo arda para depois poder ter pena e ter razões para chorar quando da minha Roma interior já só restarem cinzas a esfriar.

E é quando encontro Deus numa sinfonia de Brahms, num nocturno de Chopin, numa peça de violino de Sarasate. Ou em Bracusi. Ou em Rodin a pensar. Ou Miron a fazer-me de discóbolo.

E é com pedaços deste amor que em ti sonhei e sonho desde que te conheci, que moldo um outro amor que esculpo em pedra, pensado-me Bernini a esculpir o David em Esforço, com os dentes cerrados a fazer girar a funda e que recortei depois em ti o azul que em ti adoro mas que é o meu desassossego, o tempo de um meu descontentamento, porque o azul é meu e teu, é só nosso, mas que é um azul que não existe, porque nada existe senão este amor que te tenho neste à procura de um tempo que irremediavelmente perdi.

E depois de te dizer isto tudo, ou quase tudo, fujo, como um pecador arrependido para o meu lado contemplativo, a ser o estagirita de uma Macedónia que amei em Alexandre.

Há pontos

Há pontos de interrogação que se põem sempre no fim de uma pergunta. Mas não, os pontos de interrogação deviam estar sempre, também, no princípio da frase. Aliás, não há muito tempo,  ainda se usava isso. É só folhear livros de há umas décadas atrás.
Talvez porque nessa altura houvesse uma maior lucidez para ver que a pergunta não é nunca um fim, mas um começo de qualquer coisa. A pergunta que se faz pressupõe uma resposta, um dar continuidade ao que alguém quiz pôr em questão.
Por isso me parece que as perguntas são como uma forma de pensamento, fluem, fluem e não deve haver para elas qualquer limite, como também não deve haver qualquer limite para o pensamento.
Nem há.

Acho graça

Acho graça quando as pessoas me dizem estar de perfeita saúde, e fico a olhar para eles espantado, como se a vida para eles fosse eterna. Nem nunca estão de perfeita saúde, não é possível, pois começa-se sempre a morrer mal se nasce, nem a vida é eterna, porque eterna mesmo só a eternidade.
E isto não tem nada que ver com qualquer tipo de pessimismo ou de inevitabilidade ditada pelos fados.
Mas estar bem, tão de perfeita saúde não augura nada de bom, quanto a mim, porque tudo é transitório, efémero, e todo o tempo não passa de um instante que mais dia menos dia acaba. É tudo apenas um instante.
Pode-se estar de perfeita saúde enquanto saúde em decadência, em corrida desenfreada para o fim. O que querem dizer mas não sabem, é que se estão a aguentar muito bem nessa corrida. Mais nada.
Moral da história: há que viver sempre  cada momento como se esse momento fosse a vida inteira e sorrir, sorrir mesmo a quem se ama, porque depois pode-se já não o conseguir fazer por mais que se  queira. Sorrir sobretudo a quem se ama.
Alguém dizia : "não faça da sua vida um rascunho porque pode não ter tempo de o passar a limpo".
É isso, acho graça a estas coisas, fazem-me pensar e fazem-me viver cheio de saúde.

Entrei

Entrei no mar , na Praia  Grande, ali em baixo, como quem entra numa casa vazia e abandonada.
E pensei em quantos outros antes de mim por ali também tinham entrado um dia, ou tentado entrar.
E as águas do mar souberam-me a lágrimas e a casa onde me pareceu ter chegado, soube-me a sonhos, sonhados e mortos, ali mesmo, por quem não tinha conseguido resistir às paredes e ao chão daquela casa feita de águas revoltas, num vai-vem sem parança, de sonhos perdidos, afundados naquela casa perdida e abandonada, naquele mar onde sempre pensei vir a viver um dia.
E o mar pôs-se a contar-me histórias ligadas desde sempre a esta casa, onde eu, afoito, entrava agora, lutando com desdém contra o frio e as correntes, que mais me pareciam ser correntes de ar a redopiar pelas janelas e portas esventradas.
E foi a olhar para esse infinito casario, que atirei as minhas cinzas, como se fosse o Vesúvio naquele ano de 79.

domingo, 25 de novembro de 2012

E vivo

E vivo  nesta cidade feita de sonhos perdidos, mas onde me sinto bem, apesar de tudo, porque é nela que encontro como procurar os pedaços, os fragmentos, de um mundo que julguei ter encontrado um dia, em que dei comigo a passear-me pelas margens da vida.
Durante muito tempo fui construindo esse mundo, amassando-o como se fosse barro nas mãos de um oleiro, ou como se fosse uma pedra de um monte arrancada pelas mãos de um estatuário.
Depois fiz disso tudo um sonho, uma quimera, não como antónimo de realidade, mas porque feita dos pedaços de tudo o que durante a vida me enterneceu.

Perco-me

Perco-me em pensamentos e devaneios (devaneando como diz Pessoa), à procura de referências nas construções imaginárias que procuro fazer a partir da minha cultura, ou da cultura, simplesmente.
E então encontro formas de estabelecer uma relação com a imaginação que passa a ser a ser a minha história e até a minha memória.
Sirvo-me de mim como se fosse eu, e me bastasse, precisando no entanto de tudo à minha volta para ser. Para te ser.
Também aí encontro arte, nessa maneira equilibrada entre a imaginação e a memória, num autotelismo poético em que por um lado tenho tudo mas por outro não tenho nada..

Vou-me sendo

Vou-me sendo à medida que me consigo perseguir e ir atrás do impulso de me transformar, numa mimese  só minha, e em que só eu sei que sou eu, mesmo assim com outras formas e outras cores, vendo em tudo alguma coisa de diferente e que me faz sempre sentido, como o tal par de botas de um camponês que serviu para Van Gohg pintar e mais tarde fez com que Martin Heidegger procurasse abordar a natureza do conhecimento estético.
Tudo se cruza em mim, porque vejo e oiço e compreendo e espanto-me com tudo o que me rodeia, mesmo quando tenho que coser e cerzir linhas sem sentido numa autêntica polissemia do que entendo por criação artística. Os significados do que para mim é o significado de ser gerúndio. Vou-me sendo!

Escrevo

Escrevo como quem sonha. Escrevo como quem respira, numa necessidade urgente de pôr em palavras escritas, coisas que penso e que sinto, e em que a poesia que escrevo é uma crítica de mim mesmo, uma forma quase estranha de fazer arte, uma forma que encontro de voltar à natureza e ser tudo, árvore, rio, pedra, pássaro, terra simplesmente, e aí encontrar equilíbrios, harmonias, clareza e a prefectibilidade de encontrar uma relação que estabeleça comigo mesmo, e possa também ser tudo, crise, caos, desprezo, cepticismo, dôr, fé, amor ou desespero

O meu Pai

O meu Pai dizia muitas vezes que eu era um diletante, mas também acrescentava que não era despicienda essa minha diletância.
Eu sabia que ele não mo dizia por eu ser um apaixonado por música, que sempre fui, mas por me ver constantemente a saltar de instrumento para instrumento, de autor para autor, de peça para peça.
De facto sempre me empenhei, sempre fui um militante arregimentado, em busca, tantas vezes numa terra de ninguém, em procura de um real encontro de mim comigo mesmo, esse meu encontro com o meu primeiro outro.
Nunca seria, nem nunca pensei que fosse, o encontrar-me com a teoria do todo, do tudo, desse campo unificado, há tanto tempo procurado pela física e pelos físicos.
A minha formação era outra, se bem que não muito diferente, mas na verdade foram os grandes poetas portugueses, italianos, franceses, ingleses e alemães, que me ajudaram na construção da minha estrada, uma estrada bem larga, onde sempre coube muita coisa, tudo.

Escrevo

Escrevo muitas vezes, mas poucas ou nenhumas pretendem ser uma tese sobre qualquer coisa. Escrevo mais antíteses, para depois juntar com algumas teses mais vulgares e que andem por aí - quase toda a gente tem uma - e então conseguir encontrar a síntese, a síntese de mim e das coisas, em síntese.
Este texto por exemplo também não pretende ser uma tese de coisa nenhuma, mas apenas uma reflexão que quero conjunta e enquanto pensamento livre e libertador, como tudo o que entendo dever ser sempre o acto humano na busca de um todo unificador e pleno de sentido.

Levantei-me

Levantei-me cedo e fui passear na praia. A areia molhada pelo cheiro da noite, misturada com o cheiro à maresia, foi um perfume penetrante que me acordou os sentidos.
Olhei para o mar e senti a insondabilidade de Deus. E fiquei a pensar, enquanto andava, sem saber o que pensar nem no que penso, mas apenas a sentir o quanto estou e estarei sempre irremediavelmente aquém desse infinito que me pergunta quem sou e o que faço ali.
E a minha resposta é só esta: tento ser, tento ser nem que seja só aqui.

Há em mim

Há em mim uma intuição intelectual, uma sabedoria perguntada pelo que me transcende, e que muitas vezes não entendo, apenas sinto.
E ponho-me a recitar de cor o "Isto" do Fernando Pessoa:
"Dizem que finjo ou minto / Tudo que escrevo. Não. / Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. / Não uso o coração. / Tudo o que sonho ou passo / O que me falha ou finda / É como um terraço / sobre outra coisa ainda. / Essa coisa é que é linda. / Por isso escrevo em meio / Do que está ao pé, / Livre do meu enleio, / Sério do que não é. / Sentir? Sinta quem lê."

Ponte

Qualquer entrada numa vida, devia ser sempre por uma ponte,  e que se chamasse Ponte dos Suspiros, como a de Veneza, que ficou célebre com este nome por ser o local de passagem de todos os condenados que saiam do palácio dos Dodges a caminho das masmorras onde iam apodrecer até à morte.
Também um dia entrei na vida por uma ponte, mas ainda não cheguei a parte nenhuma porque também  de  nenhuma parte eu vim. Aconteci.

Vitrúvio

Não quiz ver o belo a passar por mim. Sabia que não lhe poderia tocar, porque o belo não tem substância, nem forma. É, simplesmente, nessa imensa complexidade de ser belo sem se perceber o que é a beleza.
Não olhei, mas também não tapei os olhos, não os velei com nada, porque como disse o Profeta Maomé "o verdadeiro véu está nos olhos dos homens". E não vesti nenhuma abaya, porque não sou mulher.
Mas olhei o Homem de Vitrúvio, como o arquitecto romano o descreveu e mais tarde Leonardo da Vinci o debuchou, e percebi que o belo não estava naquele homem belo, mas na beleza das formas proporcionadas que envolviam o corpo daquele homem.

Tudo

Tudo aquilo de que gosto acaba cedo,  esgota-se-me o tempo, prematuramente.
Tudo o que me faz sofrer permanece, num nunca mais acabar, sem tempo.
E cantei tudo, numa sede infinita, que me empedrenia a garganta, à capella, porque os instrumentos só iriam abafar o som que a sede me fazia, quando se sofria a si mesma ao saciar-se, sôfrega, num mar há já muito tempo seco por um tempo sem tempo.

Depois

Depois tentei pintar o infinito, com as cores da vida e da morte e dei comigo a pintar-me, no que sinto e no que penso, a pintar-me nos meus sonhos, reflectidos num espelho, que se reflectia noutro, e noutro, até ao infinito, e onde eu me ia vendo sempre outro, e outro, e outro também.
Depois pintei o cheiro de um beijo, e pintei o sabor e o espanto do que senti quando to dei.
E uma sede de infinitos foi feita de infinitas sedes, lágrimas que me encharcaram o corpo e depois a alma, e a pouco e pouco, senti-me a morrer afogado em mim mesmo.

sábado, 24 de novembro de 2012

Ser posterior

Ser posterior a mim, voar como Ícaro a caminho do Sol, para me sentir perdido num além qualquer que desconheço, mas de onde me pudesse ver e olhar, como se eu fosse outro que estivesse por mim a passar.
E fui pondo no papel o que imaginava, e fui sendo assim, um contador de histórias, da minha própria história que nunca tinha conhecido. Fui-me fazendo da minha própria imaginação e sem dar por isso aproximei-me de mais do Sol, e ele derreteu-me as asas. E comecei a cair.
E caí num Egeu só meu, um Egeu que um dia me prometi demarcar no mapa e construir, como quem constrói um barco só para ir à procura do mar.
E foi lá lá que eu estava, já há uns tempos, porque me tinha antecipado e chegado primeiro do que eu.

Feliz

Tenho um medo atávico de ser feliz, de me consumir sem dar por isso, num sorriso que não invento.
Tenho medo, é verdade que tenho medo da energia que há no silêncio, e de ter que me deitar na fogueira que me consome as aflições e as amarguras. Que me consome até os lutos que ao longo da vida tenho feito por aqueles que perdi. E pelos outros, os que nem sequer cheguei nunca a conhecer.
E senti-me olhado, perseguido, seguido pela vida e por mim mesmo, nas vielas de me ser, o medo, esse medo atávico que tenho de me olhar e ver.

Rezei

E rezei , de joelhos rezei ao Senhor de todas as agonias, ao Pai de todos os sofrimentos, àquele de quem já não sei o nome, nem posso saber, porque o que busco não sei.
E deixei-me ser uma abelha, só para poder morrer entre as flores.
Entre as cores.
Entre os cheiros que só a vida exala, quando a vida morre.
Quando na vida já não há sabores

Rilke

E um pouco à Rilke, senti que as minhas feridas eram o que ficava do uso constante e quase exacerbado do instante : esse instante que é alma, que é música e transfiguração.
E as minhas cantigas eram só para embalar e adormecer o sofrimento, mais ninguém. E, então depois, poder escutar a vida e as memórias que dela já me tinha esquecido.
E não me senti mais poeta. Só me senti mais poesia.

F. Pessoa

Fico satisfeito quando leio que um escritor inglês, de que não me lembro do nome,  chama ao "Livro do Desassossego" o livro do século, e um outro, Remy Hourcade, diz que a "Tabacaria" é o mais belo poema do mundo.
O slogan da Coca-Cola, dizem que inspirado na "Vida de D. Quixote e Sancho" de Miguel de Unamuno, e que muita gente cita "Coca-Cola, primeiro estranha-se depois entranha-se" é de Fernando Pessoa também.
Como este grande poeta, sempre e desde muito novo exerceu em mim um fascínio espantoso! Pensava-o a todo o momento, lia a Poesia, nos seus vários heterónimos, as "Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, as "Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literária" e a sua "Filosofia I e II", em que tudo era um viajar por caminhos que eu ia descobrindo e onde também eu me ia descobrindo neles. Como o amei!
Fazia nesse tempo ginástica no antigo Ginásio Clube Português, ali ao Ferreigial, perto do Cais do Sodré, e parava muitas vezes à porta do 17, se bem me lembro, na rua do Ferreigial de Baixo, um conhecido Lupanar daquela altura, e onde ouvi dizer que o Fernando Pessoa tinha uma admiração muito especial por uma tal Madame Carriço, dona do bordel.
Tantas vezes me apeteceu lá entrar a pensar que ela ainda seria viva e me contaria histórias dele.

Transformação

Sinto-me sempre numa constante e permanente transformação, numa espécie de fluidez onde me deixo ir como se numa piroga, na suave e lenta corrente de um rio.
E sinto-me nessa mimese em que sou o transformador e o transformado, em que me sou as várias formas de outros, deixando-me vestir de outras cores, de ter outros aspectos, e outras maneiras de sorrir.
E vou-me transformando mais e mais em ti, numa fusão que só o amor permite, deixando de pensar para apenas te pensar. E já não sou eu, mas tu, e por isso quando te saúdo, digo: ó eu. E já não me sinto só.
Depois, também o curso do rio muda, a corrente torna-se mais forte e precipita-se no mar, dissolve-se e perde-se nele como quando te abraço, meu amor.

Biblioteca

Quando chego a casa a primeira sala onde entro é na biblioteca. Ponho em cima da secretária as tralhas que trago de fora e depois gosto de me sentar um pouco no sofa a olhar para as estantes, para os livros.
Como que faço um descansativo passeio de fim de tarde, e deixo-me envolver por aquela quase vida que deles transpira.
Vejo-me em Biblo, hoje Gebel, na Fenícia hoje Líbano. E recuo no tempo, reencontro-me com personagens que preencheram o meu imaginário, relembro histórias, factos, teorias, teses, romances, ensaios sobre as mais variadas matérias, e até livros de aventuras que tanto me fizeram sonhar quando eu era mais pequeno, e ainda sonho, na verdade.
Estes meus livros são um tesouro, onde há de tudo um pouco, e que me ajudam de uma maneira ou de outra a viver, não só a minha singularidade mas a minha pluralidade, neste meu universo muito meu a que tantas vezes por isso mesmo chamo pluriverso, e onde ao encontrar-me comigo mesmo, me encontro com o meu primeiro outro.
E passo as mãos pelas lombadas como se estivesse a passar as mãos por um corpo amado e sempre apetecido.

Vivemos . . .

Vivemos num mundo cheio de paradoxos, incongruências, atopias, sem sentidos. Não se pode nem se deve dizer o que se pensa, o que se sente. Tudo é menos bom num mundo onde se valoriza mais o que é mau do que o que é bom. Faz-se o mal às escâncaras de toda a gente mas tem que se fazer amor às escondidas.
No fundo vivemos num mundo onde só as crianças e os loucos podem dizer a verdade. Mas a sociedade encarrega-se de "educar"as crianças e de internar os loucos.
Na Rússia comunista não havia os campos de reeducação onde morreram tantas mentes brilhantes, só por dizerem o que pensavam, o que não convinha ao sistema?
Foi assim, por exemplo, que Estaline perdeu a única oportunidade de um economista soviético receber o Prémio Nobel: Nicolai Kondratiev ou Kondratieff, com os seus super ciclos ou longas ondas económicas.

domingo, 18 de novembro de 2012

A tentação

Tenho muitas vezes a tentação de me sentir na idade da reforma. Não de alguma ocupação ou de um trabalho de que receba uma remuneração qualquer. Não, não é nada disso, penso muitas vezes em me reformar do que sinto, do que penso da vida e do mundo. E até de mim, de quem no fundo é de quem estou mais cansado. Reformar-me de ser ou de tentar, em vão, ser.
Quem não tem tentações? E eu, como alguém disse, até costumo resistir a tudo, menos à tentação o que acho uma inconfessável fraqueza.
Esta vida é um emprego que apesar de tudo tenho mantido desde sempre, e de há tanto tempo que já não lhe sei a idade, e onde nem sempre tenho ganho coisa que se visse e desse para o meu suetento de uma forma compensadora. Nem todos os negócios em que me meti correram bem, começando por um, primordial, que foi o de ter nascido, pois ninguém me perguntou nada nem me informou de coisa nenhuma. Assinei de cruz, podera, ainda nem sequer sabia ler nem escrever, e numa folha em branco que a vida depois foi preenchendo.
Inexperiente como era naquele momento, naquele instante que ainda dura, dizem-me que assinei declarações de compromisso, certidões, fiz pedidos de alvarás e até votei a favor de leis e decretos lei, sobre a vida e o viver, eu, que ainda hoje nem sei que idade tenho nem sequer como me chamo.
É, estou tentado a abandonar tudo, mas a questão é absurda: não tenho nada que possa abandonar, donde possa sair, uma porta para bater. Nada! Até agora penso que só me resta fazer uma coisa : assinar a minha certidão de óbito, com o respectivo testamento a acompanhar,  - embora não saiba a quem deixar alguma coisa nem que coisa possa ser - o que também não será assim tão fácil, porque primeiro tenho que ir aprender a escrever.
Um imbróglio de todo o tamanho e em não sei quantos actos, esta tentação, a que de facto também não sei como lhe resistir. Se me está a ser difícil viver ainda sinto que estou a ter mais dificuldades em morrer.
Resta-me tentar meter uns empenhos para ser apresentado às três Parcas, as que fiam a trama da vida, se bem que Cloto já me ajudou a nascer e segurou na roca, Láquesis lá me tem feito girar o fuso, e só me falta, no fundo, ter uma conversa de pé de orelha com Átropos para ver se me corta o fio da vida

Biblioteca

Olho para a minha biblioteca cheia de livros desarrumados, e sinto-me a viajar por mil países, envolvido em mil aventuras e intrigas, por dentro de mil pessoas e de mil formas de ser e de estar. Olho para a minha biblioteca e vejo centenas de cérebros a pensar, e em mim próprio começam a escrever-se equações, a fazerem-se derivações, a construirem-se conjuntos. A juntarem-se letras e a surgirem palavras que vão formando frases ao longo de páginas e páginas, de volumes e volumes.
E ponho-me a escolher um a um, os livros por que me sinto subitamente atraído e incapaz de me separar deles. Amontou-os a esmo, sem lhes ler as lombadas para não ter por quem chorar e depois meto-os dentro de um saco, como se fosse um alforge onde metesse o sustento para mais uma  grande viagem das muitas que passo a vida a fazer, à roda dos meus mundos sempre por descobrir, sempre a procurar sem procurar como os três príncipes persas em Serendipo.
Pego numa  arma e encho os bolsos de munições. Costumo levar sempre, por precaução, - aprendi com a vida -, com que me defender dos amigos, e levo também um par de botas para poder trocar quando as que tenho se escancararem de cansaço.
Foi-me dado um caminho para percorrer, uma espécie de segmento de vida que um dia os deuses entenderam dar-me para viver. Um segmento de história que um dia os deuses me pediram para escrever. Um segmento de dor que desde sempre soube ter que sofrer.
Despeço-me da minha biblioteca como quem se despede da vida, como quem se despede de um amor que tem que aceitar ser impossível.
E tenho uma última conversa com eles, em que sem lhes dizer nada, lhes falo da falta que me vão fazer e do testamento trágico que ficará guardado num subescrito onde terei o cuidado de deixar a minha última carta. Em branco.
Tragígrafo de mim invento-me numa vida que me inventaram de propósito para que eu a pudesse inventar. Viver sempre também cansa!

Fui ter com o mar

Fui ter com o mar, aliás com quem sempre me dei bem, mesmo ainda antes de ter nascido. Conhecemo-nos desde que houve aquele feliz encontro, à esquina do dentro que me gerou, e começamos a ser inseparáveis um do outro, ao ponto, de eu pensar muitas vezes que foi a partir daí que comecei a ter obsessões, paixões desenfreadas, prazeres inconfessáveis, de me deixar ficar assim, aninhado a quem me dava tudo, e por quem eu me dava todo.
E fui crescendo, primeiro durante aqueles primeiros meses de intensa e dependente paixão. Depois nasci, já mais crescido e mais liberto desse pathos que acaba sempre por ser philia e depois eros e só por fim agapê.
Isto para te contar que este meu amor tão antigo como eu, continua a ser o sal que as minhas lágrimas choram quando de alegria te beijam o amor, meu amor. Porque tu és o mar da minha inconsciente consciência, com quem converso horas a fio, e ponho em verso, o mar e a cor dos teus olhos onde um dia mergulhei numa busca inacabada pela Atlântida dos nossos sentires.
Sabes meu amor, dizem que uma triangulação amorosa é impossível, mas repara como se enganam, e como nós somos diferentes a viver esta geometria a três. Quanto muito não se lhe poderá chamar euclidiana, mas de Hilbert ou de Riemann, meus amigos de infância, só porque já sonhava com eles sem saber, e sem saber sequer absolutamente nada de geometria.
Mas meu amor, neste nosso amor a três, passamos bem sem qualquer deles, porque no fundo continuam a basear-se nos 21 axiomas, e se pegarmos em 21, e somarmos, como tenho a mania, 2+1 temos o três. Não é que nós saibamos muito, eles, esses quase todos que vivem à nossa volta, é que sabem pouco, muito pouco meu amor. E como disse depois Bessel "enquanto o número é produto exclusivo do nosso espírito, o espaço tem uma realidade para além do espírito, cujas leis não podemos prescrever completamente".
Uma coisa não sabem de todo em todo, porque nunca lhes disse nem penso alguma vez dizer: os teus olhos, meu amor são esse mar onde nasci e onde tu nos continuas a alimentar, amnioticamente ou não,  até morrermos. Sim, meu amor, até morrermos, porque sem ti, sou quanto muito um mar morto, onde ninguém consegue sobreviver.
Nem eu.

sábado, 17 de novembro de 2012

Quando

Quando me ponho a decorrer-me através dos meus afectos, às vezes tenho a tentação de despoletar a minha granada interior, que aliás trago sempre já sem cavilha.
A minha vida é feita de curvas e contra curvas interiores, sinuosas, pedregosas, de trilhos a beirarem precipícios profundíssimos, ou de becos sem saída, de ruelas entre ruínas esquecidas, de terrenos baldios, estéreis e abandonados a todos os lixos da vida, a todas as ervas daninhas que crescem a esmo e são pasto de cogumelos venenosos.
Apenas sinto a cavilha na minha mão, à espera que a liberte para que no estampido destruidor possa ouvir o teu grito feito do medo de te perder. E é nesse grito que eu sou tu, e é nesse grito que somos, meu amor, a imagem perfeita da história do rei vai nu, não por ambicionarmos roupagens nunca vistas, mas para que só as pessoas inteligentes nos vissem amorosamente passar, na nossa nudez interior.

Oiço . . .

Oiço músicas quando pinto e há mesmo um cheiro interior a tintas a pairar quando me mastigo os sonhos, e enquanto os saboreio depois, sem pressas.
E para me fazer de muitos eus, vou-me pintando de várias cores, de muitas cores, e sou um camaleão de mim mesmo, sempre a misturar-me com a vida sem que ela dê por isso.
E as músicas que oiço vão-me dizendo por onde ir, em colcheias e semi-colcheias, em semínimas aleatórias com que vou pintando uma ode à poesia, que no entanto não canto como antigamente se fazia, porque nunca me deixaram entrar no Odeão de Atenas receando que eu fosse capaz de fazer música ora dedilhando o bistel, ora a canelura, das colunas de que me faço, para depois ouvir, os meus pensamentos.

Não reservo

Não reservo só para mim aquilo que penso e sinto. Partilho tudo com a maior abertura, liberto de quaisquer medos ou preconceitos. Sei que chego a ser indiscreto, sobretudo quando olho e fixo o meu olhar em tudo o que sinto emanar do que me parece ser belo.
Dizem-me às vezes que devia ser mais prudente, o não vás por aí. Mas não está em mim ser prudente, penso que nem sei muito bem o que isso é. Nunca soube, mesmo quando em África corri riscos de me encontrar frente a frente com a morte.
Sou curioso, em tudo, e até nisso : como será ela, a morte? A cara será mesmo só uma caveira descarnada? E debaixo do braço, andará sempre com aquela segadoira, assim como que arrimada a um bordão para se fazer à estrada da morte? Para mim, a morte é um poeta, e a segadoira a que se arrima, é uma forma de pôr em rima o desencontro constante entre a vida e a morte.
Não, quando amo não escondo que amo, nem porque amo ou o que quero amar. E se há coisa de que posso sentir orgulho é essa: amar só porque amo, e porque é feito de amor esse meu gesto de amar. De te amar, amor.
O meu exército está no activo e não na reserva.

Sou afectivo

Sou afectivo por natureza, de nascença, como também se diz. Tenho e sinto pelos outros um amor forte, autêntico, e quando sou amigo de alguém, esse alguém pode ter a certeza de que nunca está sozinho. E com a vida, ou com a idade, sinto que não tenho qualquer pudor em expressar esse afecto, até porque, e digo isto muitas vezes, tenho para mim que a amizade é a mais pura forma de amor, já que não vive da necessidade, mas assenta na interioridade da vivência amorosa.
E dou graças a Deus, por sempre me ter dado amigos a quem amo, a quem posso amar e por quem me sinto amado, com a intensidade de tudo o que é puro e se purifica por, e nessa mesma intensidade.
Às vezes posso não ser compreendido, o que nem sequer me espanta nada, porque o amor é raro e não se compreende: vive-se e sente-se no abraço que é corpaço, porque é amplexo de sentires e que só a verdadeira amizade permite. E como dizia Albert Camus "porque será preciso amar raramente, para amar muito?" Sim, amar mesmo, é raro, meu amigo.
E digo-te isto agora, porque como já to disse tantas vezes, é como se fosse sempre a primeira vez que to digo. É um prazer que sinto, este de me convencer e ficar satisfeito comigo mesmo, por, e por fim to conseguir dizer, meu amigo.

Fui comprando

Fui comprando estas memórias, as minhas, ou se quiseres as que fui encontrando dentro de mim, aqui e ali, nas ruelas apinhadas de gente, ou nos ermos por onde me alongo quando dou passeios ausente de mim.
Também às vezes dou comigo a percorrer azinhagas antigas, dos arredores de mim, entre muros só de pedra arrumada ou toscamente argamassados, em becos sem saída ou nas mais apertadas praças de não sei onde em que de ver tanta gente, não consigo ver ninguém.
Troquei muitas vezes o passo, tropecei, cai e magoei-me nesse me ser andarilho pelos tempos que só eu sentia, mas não chegava a viver, porque há muito que tinham deixado de ser meus, nem mesmo das memórias em que me fui perdendo e de que já me esqueci, perdido nos recantos deste meu peito enrugado pelo tempo embora sempre "franjado de infinito".
E ainda hoje não sei se fui comprando ou se me fui comprando.

Existo

Existo, porque para mim, o alimento fundamental da existência, é mesmo esse sentir que existo.
E este existir não tem que ter corpo nem forma, porque o existir, o ec-xistir, é o saber que posso conter em mim mesmo (porque em si mesmo) a possibilidade existencial de auto-transcendência, de me auto-transcender.
E é assim que existo, numa espécie gerúndica de me ser, na medida em que me vou transcendendo.
Utopia? não sei, nem tenho, na verdade, nenhuma resposta para dar a ninguém, senão a que vou dando sempre a mim mesmo, porque também acredito que só cresço e progrido, à medida que vou concretizando utopias umas atrás das outras. E isto também nem sequer é uma resposta: é um sentimento, um sentimento de mim.
Afinal só existo na utopia, porque é sempre nesse não-lugar que acabo por me encontrar e sentir que existo.