segunda-feira, 4 de julho de 2016

E fui coleccionador

E fui colecionador de coisas raras, como o caroço de uma jaca que me ia caindo na cabeça em Goa, ou um pedaço de bétel que Afonso de Albuquerque um dia quis experimentar; uma escova de fato do Imperador Francisco José ou um alfinete do Marquês de Pombal e os restos da ordem que mandava um juiz abafar a Revolta dos Taberneiros, tendo sido, pela primeira vez em Portugal, enforcada uma mulher. 
Uma cópia do Código de Hamurabi e outra do Breviário de Alarico, restos de um arado sumério e os arreios do cavalo de Saladino; um anel do cabelo de Gengis Khan e uma bala do revólver de Mustafá Kemal, o Ataturk; as meias que Alvares Cabral levava quando pisou terras do Brasil e a conta de um jantar no Tavares Rico, no século XIX. Um pedaço da cortina do teatro à La Scala quando lá foi representada pela primeira vez a Madame Buterfly; o chapéu que Wagner usava quando morreu em Veneza, e até um bocado da gôndola que o levou para o cemitério.
Um soneto escrito pela mão de Bocage num bocado de papel de uma tasca qualquer e a espingarda usada pelo assassino de Dom Carlos; um crucifixo com que o Padre António Vieira dava a bênção aos índios que tentava tirar da escravatura, no Brasil e a espada com que Paulo da Gama partiu com mais quatrocentos homens para ajudar o Prestes João acossado por milhares de muçulmanos, e o pente com que se penteou a Rainha Antonieta antes de ser guilhotinada.
Enfim, colecionei isto e muito mais ao longo da minha vida como que a querer guardar em casa toda a historia do mundo. Até debaixo das camas e dos sofás eu guardei coisas. Porque te via em todo o lado, meu amor. E em todo o lado te encontrava.
Um dia quiseste tudo em troca desses teus olhos azuis. E eu dei-te tudo, porque tudo eras tu, estava em ti, porque o azul dos teus olhos era tudo, eram toda uma história de amor que guardo só para mim,  afinal, o que havia de mais raro e eu queria ter de qualquer maneira. E tu, meu amor, passados estes anos todos, continuas a ter tudo limpo e arrumado enquanto eu com o coração de joelhos te beijo a vida.

Sem comentários: