sexta-feira, 4 de julho de 2014

FAZER

Fazer é ligar-me a um acto de vontade, que no entanto não é criar. Fazer é libertar-me de mim e conseguir transformar em poema todo o meu dia a dia, é encontrar harmonia entre o espírito e o sentimento, é ficar ruborizado ou empalidecido com um olhar que me atravesse, trespasse, e me deixe agoniado, neste meu todo de ser, como um fruto, polpa e caroço, pele e sensação e saber separar o que tem valor poético e eterno de tudo o que é transitório e insuficiente, na agonia em que cada vez mais me sinto, na agonia em que sei ser sempre eu a perder.


Pensei ser capaz de sentir ao mesmo tempo o relativo da hora e o absoluto do tempo.
Pensei ser capaz de viver os valores em que acredito, sem me deixar ficar enamorado e preso ao momento que passa, e me leva sempre com ele, um pouco . . .
Pensei que tinha sempre em mim a celebração dessa noite de Walpurgis, não a lembrar-me da santa, mas da feiticeira e demoníaca, que nesse dia saía à rua para se reunir com as outras, num sabat de bruxas do espírito, num capriccio alegre e saltitante, em que eu não lutava pela posse de nenhuma condessa viúva como em Strauss, mas numa gigantesca e incontrolável euforia do meu cérebro em luta com as minhas possibilidades.


Inebriei-me de tempo, como se com um álcool desvairador, capaz de me perturbar ad infinitum, narcotizado, adormecido e transformado no próprio Morfeu, também eu filho da Noite e dos Sonhos e ser a sombra de mim, apenas, como ficaram os mortos depois de Orfeu ter passado por eles, sem os ter reconhecido, quando da viagem que fez pelo Mundo Inferior em busca da sua Eurídice.
E também eu aprendi a tocar lira, para ser como ele quando a tocava e os pássaros deixavam de voar para lhe ouvir a música, e nunca mais olhei para trás, não fosse Hades castigar-me a nunca mais ter tempo para continuar à procura de Eurídice.
Mas consegui esconder-me da minha sombra, debaixo de um outro tempo, feito de um fogo que me queimava, com línguas de um fogo que me beijava. E dessas línguas saíram muitas outras, que me confundiram ao ponto de eu me esquecer de falar. Mesmo assim tentei encontrar Mezzofanti, já que ele sabia mais de cinquenta línguas, mas ele já tinha morrido há quase duzentos anos.
Mas os vapores do tempo inebriaram-me cada vez mais e deixei-me ir, adormecido e inconsciente.

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