quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A Tarde

Já me tardava a tarde, e a pouco e pouco ia perdendo a esperança de que viesses. E pus-me a sonhar venturas e agarrei em tintas e em pincéis e colori os sonhos em pinceladas de azul, de azuis de várias cores.
E pintei-me a mim mesmo, como se fosse um palhaço no palco da vida. E depois sei que te vi ao longe, a vires ter comigo, como se não tivesses pressa dos meus beijos. E sei que chorei, que chorei lágrimas também de várias cores enquanto tu me tentavas limpar a cara com um lenço feito de sonhos. Dos teus sonhos. Depois deste-me um beijo, longo, tão longo que o tempo passou e levou as cores todas com ele. Mas uma cor era minha. Era a que era a tua. Era esse azul que trazias sempre nos olhos e que só eu sinto dentro de mim a colorir-me os sonhos. E era já tarde, tão tarde que me esqueci que a noite já tinha passado, e os dias, e os anos, e o tempo, enquanto as nossas bocas se continuavam a beijar, de azul, sem tempo.
E os meus cabelos, e as minhas barbas, começaram também a cinzar-se em tons de azul, como se fossem máscaras esculpidas no nada, sem que houvesse gesso, nem pedra, nem madeira, nem bronze. Só o nada ia ganhando forma, talhado a buril e a cinzel, enquanto a tarde tardava em me dizer: amo-te.
Perdi a esperança. Perdi o sonho que tinha pintado de muitos azuis. Perdi o teu olhar, também.
Envergonhado e pobre como Job, fiquei sentado toda a tarde num banco do jardim das tuas fantasias e adormeci. E as tintas entornaram-se, misturaram-se, e um lago nasceu no meio do jardim, com as águas muito azuis, tão azuis como os teus olhos.
Mas um dia, já não me lembro quando, levantei-me, espantei o sono com palavras mágicas e que só eu sabia, esfreguei os olhos e lavei-os no lago, onde deixei cair, de propósito, tudo o que sentia, tudo o que tinha sonhado durante todo aquele tempo que para ali tinha estado, deitado num banco, a dormir. E parti à tua procura, pobre, sem nada, a não ser uma lágrima azul que durante todo aquele tempo tinha guardado ternamente dentro do teu olhar. Sei que depois nos dissemos coisas ternas, fizemos juras de amores eternos, e passei a viver como Diógenos, o Cínico, dentro de uma barrica onde só pedia por amor de Deus a toda a gente que passava, que não me tapassem a nesga de azul do teu olhar, que teimava em ver dentro de mim, embrulhada nos meus sonhos, como se fosse um presente de Deus ou uma dádiva dos céus.
E depois ceguei. Não que tivesse deixado de ver as nuvens e os pássaros e os montes lá ao longe. Ceguei porque deixei de te ver e sempre tive olhos apenas para te olharem e sorrirem de espanto e de alegria. E verem o quanto te amava, o quanto por ti sofria.
Agarrei no meu bordão e fui esmolando beijos e sorrisos pelo mundo fora, e assim andei, sempre perdido de mim e de ti, durante tempos e tempos, até que um dia nasci.
Já era tarde, e a tarde caia, lá ao fundo, no horizonte, onde se conseguia ver nitidamente as nossas bocas unidas num beijo que já não podia mais tardar.

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