domingo, 29 de novembro de 2009

O nefelibata

Encontrei-o um dia, há já muitos anos, este nefelibata, que como o nome indica, é, na sua etimologia grega, alguém que anda nas nuvens. E ele andava sempre, acreditem, mesmo sem nunca ter lido Rabelais. Tornámos-nos íntimos, amigos inseparáveis e um dia lá fui eu com ele pelas nuvens da nossa insatisfação, construir nelas castelos, com muito cuidado e ternura, castelos amuralhados a ouro, com ameias e merlões em pedras preciosas, o caminho da ronda tapetado a prata e feito de paz e de silêncio e em que na torre de menagem se podia ouvir sempre uma música suavíssima, em homenagem a Eros, o deus do Amor.
Mas havia sempre quem lhe quisesse assaltar os castelos que construía, e os portões não resistiam aos aríetes com pontas de ferro bruto, nem às catapultas que lançavam grandes bolas de pez a arder e que incendiavam tudo, ou mesmo alguém que descobria a porta da traição, como sempre escondida e envolta em silvas e cardos, e entrava pela calada da noite e ia apunhalar o nefelibata pelas costas, enquanto ele dormia ou distraidamente sonhava. E o castelo ruía e caia, obrigando-o, só nessa altura, a pôr os pés no chão. Mas, oh! inocência, ficava sempre perdido no meio de um dédalo qualquer, numa ilha esquecida no meio de um mar sempre em fúria, tendo apenas por companhia o seu minotauro interior, que o ajudava a encontrar colmeias de onde tirava um mel amargo de que se alimentava. Mas por mais que procurasse por onde sair, acabava sempre num beco sem saída. Então ia até às colmeias ( sempre se tinha dado bem com Aristeu, o rei das abelhas) e pedia-lhes um pouco de cera, para fazer umas asas como tinha aprendido com Ícaro, e lá ia esvoaçando, inseguro e cada vez mais cansado, por cima do labirinto até começar a sobrevoar o mar encapelado da vida. Mas o Sol que tantas vezes lhe aquecia a alma, e de que tanto gostava, derretia-lhe as asas e ele caia na agua que muitas vezes se confundia com as lágrimas que chorava enquanto tentava encontrar terra firme, nadando com o braço direito, porque o esquerdo nunca o tirava do peito, como que a agarrar o coração, não fosse ele cair e perder-se nas profundezas e ele ficar incapaz de sentir. E chegando por fim a um rochedo na costa, deitava-se a descansar, sem dizer nada, simplesmente a sentir, na sua perplexidade de continuar vivo, apesar de tanto sofrimento. E decantava a dor, como quem decanta um vinho velho e de boa colheita para o beber só com o melhor amigo. E o desespero tornava-se puro enquanto o olhar se lhe ia turvando do vinho e das lágrimas que lhe ensopavam a alma.
E voltava a encontrar outras nuvens, onde julgava mais uma vez poder construir o seu castelo ideal. Mas os tempos mudavam e as nuvens desfaziam-se e só então voltava a pôr os pés na terra, ao cair delas abaixo.
Mas o fim estava próximo, sentia a vida a querer-lhe sair pelo peito, cansado e dorido, cansado de tanto lutar e até de sonhar. Queria tudo e não queria nada, e mesmo quando uma vez estava sentado no degrau de uma escada a apanhar sol, e lhe apareceu Alexandre a dizer-lhe que lhe pedisse o que quisesse, que lho dava, o nefelibata lembrou-se do velho filósofo grego e só lhe pediu que saísse da frente para não lhe tapar o Sol.
Já não tinha forças para continuar a pegar nas pedras das ruínas dos castelos que tinha construído, para se pôr a construir mais castelo nenhum. Um dia confidenciou-me que já só lutava por se esquecer de todos os que o tinham atraiçoado ao longo da vida, com a sua falsidade, ignorância, medo, preconceitos, fantasmas, egoísmos e desprendimentos, como se desprendiam as pedras que, feito Sísifo, tanto lhe tinha custado a levar lá para cima.
E o nefelibata chorava a sua desdita, enquanto continuava a pensar que apesar de já ter perdido muito, o que lhe restava ainda era imenso. E assim ia lendo a vida, repartido por emoções e sensações que não controlava, a não ser quando sonhava sentado nas nuvens, onde não lhe chegava o cheiro fétido do mundo, e a aragem lhe enchia os pulmões de novas esperanças. E assim, o nefelibata, farto das mais variadas contradições, vazio e ao mesmo tempo cheio de um inesgotável Amor, já não sabia a quem o dar na sua idade a esgotar-se.
E recordava as amizades com que tinha enchido os seus castelos, desde Diotima, a mulher de Mantineia - a terra onde morreu Epaminondas ao derrotar os espartanos - , e que lhe ensinou, como a Sócrates, em que consistia a essência do amor, a Celso, o célebre médico romano da era de Augusto e a quem chamaram o Cícero da Medicina, passando por Rumi, o poeta persa do século XIII, que tanto lhe ensinou a "vender tudo e a comprar espanto".
Dava sempre nomes aos seus castelos, nomes das músicas que ao longo dos anos lhe tinham enchido o peito de sons e melodias.
Quando mais novo, Stevie Wonder com o "You are the Sunshine of my Life", Serge Reggiani com o "Le Premier Amour du Monde" ou a "Lisztomania" do Roger Daltrey e depois, mais tarde, o "Adagio" de Tomaso de Albinoni, o Concerto nº 3 para violino de Mozart, ou ainda o "Prelúdio" para violoncelo de Bach e mais recentemente o "Concertino para guitarra e orquestra" de Bacarisse ou a ópera, durante tanto tempo proibida, de Prokoffief, "A História de um Verdadeiro Homem".
Das últimas vezes que o vi, o nefelibata lia compulsivamente " O conceito de Angústia" e "O Desespero Humano" de Kierkgaard, "Do Sentimento Trágico da Vida" do Unamuno, "O Homem sem Qualidades" de Musil ou "Um Homem Liquidado" do Papini.
Agora prepara-se para ir viver o resto dos seus dias num dos seus castelos abandonados, em ruínas, sozinho, rodeado das suas recordações e envolto numa obsidiante solidão.

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