domingo, 26 de novembro de 2017

Acerca de uma família a fingir.

Hoje dormi pouco e mal. Mas a noite insone fez-me pensar. Sim, pensar, porque o meu cérebro é que esteve acordado. Não digo recordar, isso não, porque tinha que usar o meu coração e o meu coração, esteve sempre ocupado com o amor que cada vez mais tenho e sinto pelos meus "humilhados e ofendidos". E é aqui que começa esta história, que me contaram, mas que até me parece que a sonhei, porque de facto é confusa. Eu até entro nela e não entro. E não sei se ma contaram ou se fui eu que a inventei. Ou li-a num artigo sobre uma família qualquer que um amigo meu de há muito conhecia e resolveu escrever sobre ela no seu blog. E comecei a ler o que ele tinha escrito.
Não escrevo este apontamento como Salústio fez com Lúcio Sérgio Catilina, descrevendo bem a "Conjuração Contra o Senado", em que se envolveu, embora permaneça algum obscurantismo em relação aos factos de que foi acusado na altura, nem como Cícero nas suas "Verrinas", contra Verres, e as suas venalidades e rapinas na Sicília, embora me apeteça estabelecer alguns paralelismos com gente que eu conheço, ou julguei que conhecia, hoje, pobres Catões que à sua maneira, têm vindo a viver obcecados a destruição de uma Cartago, que por coincidência tem agora o meu nome. Talvez daí o meu interesse nesta história, pois doutro modo não perdia tempo a ler sobre gente tão pobre de espírito, tão fingida, tão mesquinha. É que para grande escândalo desta família tão pudica, (a fingir, é claro), acusaram-me de ter tido um caso com Dido, não fazendo a mínima ideia, (nem podiam fazer, claro, ignorantes como são), de que nunca me chamei Eneias nem tão pouco vivi alguma vez no Norte de África.
A verdade, tenho que a aceitar com pena, é que quem eu mais gostava que lesse isto, não a vai ler. Não só no meu blog. Não lê, simplesmente, por formação, por incapacidade, já que ler não é só saber juntar letras, mas saber o que elas querem dizer quando se juntam. E eles não sabem. Coisas de família. Já na casa paterna não se costumava ler, não havia livros, fingiam, também aí fingiam, ser uma casa monástica e medieval, e cheia de valores e de princípios. Mas... agora me lembro, que até havia lá um escritório, (não um "scriptorium" pois nele nunca nada se escreveu), com uma bela secretária, talvez Napoleão III, onde, quanto muito se terá escrito alguma receita - havia um médico na família - , (que bem teria querido ser Celso, o célebre médico do século de Augusto, e a quem até chamaram de Cícero da Medicina, mas a mulher, por ciúmes, e que não eram a fingir, nunca deixou abrir consultório), ou algum rol de compras, ( havia sempre muita gente à mesa) ou mesmo se terá assinado algum contrato de venda de cortiça ou de compra de algum prédio, (eram proprietários). Que eu saiba, mais nada, absolutamente mais nada. Havia também uma estante com livros. Encadernações bonitas e gravações a ouro. Mas o que pasmava, é que os livros eram falsos, quase todos a fingir. Era isso, de madeira a fingir carneira. Ninguém os tinha escrito, apenas um carpinteiro habilidoso os tinha feito. A fingir. Por isso, por trás das bonitas lombadas não havia páginas nenhumas para ler, nem sequer de madeira. E começavam ali, para mim, os "sepulcros caiados" de que fala um Livro de que, pensava eu, tanto gostavam de ler lá por casa, antes das refeições. Dum lado dessa estante a fingir, estava aberta uma caixa com duas pistolas de duelo, do século XIX, como paradigma da falta de diálogo que por lá sempre houve, pois, com aquelas pistolas ou se matava ou se morria. Não havia lugar para pontos intermédios, troca de opiniões, pois quem ousasse ter alguma ideia ou opinião diferente, era simplesmente proscrito. E pelo contrário, tudo era irrelevante, como se para eles alguma coisa pudesse ser relevante a não ser fingir. Só fachada. Por trás duma dessas falsas prateleiras com os tais livros a fingir, podia abrir-se uma portinhola e aparecia um bar, que não era a fingir, ( apenas para provar que há sempre excepções à regra), com copos, saca-rolhas (não confundir com sacabuxas, o nome antigo dos trombones, instrumento que até pode parecer estar a ser agora usado por mim) e algumas garrafas de bebidas espirituosas. Essas penso que tinham alguma coisa lá dentro. Umas. Outras também eram a fingir! E lembrei-me de Gomes Leal e do seu magnífico poema "A Senhora Duquesa de Brabante", e de quando o filho (disforme, malquisto, horroroso!) lhe morre e de quem ninguém teve pena. Mas nesta história até tive pena. Apenas pena de não ter sentido pena nenhuma. Nem "saudades, de saudades já não ter", como numa letra de um fado. É que nem nas vascas da morte a matriarca pediu que chamassem a Filha e os Netos que tinha abandonado há dois anos, ( nem que fosse a fingir) para com eles ter uma palavra de reconciliação. Felizmente é que na verdade e não a fingir, foram todos vê-la ao hospital dois dias antes.
Depois vieram as costumadas exéquias. Na Igreja, numa essa barroca folheada a ouro, (também a fingir, com certeza) foi colocado o caixão ou talvez apenas um cenotáfio (há quem finja tão completamente . . .) E houve Missa cantada, com Homilia e Leituras, umas Sagradas e outras profanas, com coisas bonitas, concordo, mas outras que pareciam ser para uma outra ocasião qualquer, talvez para serem escritas ou lidas num dos tais livros a fingir que só tinham lombada, numa estante a fingir, de uma casa a fingir de uma família a fingir. Mas contaram-me muito mais coisas, sei muito mais coisas, mas aí fui eu quem fingiu não perceber.
Uma mulher já entrada em anos, mirífica e mirificada na sua função de Ministro da Comunhão, deu-me o Senhor, "o Corpo de Deus", disse, e eu, Amém, num assim seja de aceitação de O receber das mãos de alguém que vive de relações cortadas com uma data de gente da sua parentela incluindo inocentes criancinhas. Mas dela nem um sorriso, um toque cúmplice na minha mão que recebia a Partícula Consagrada como fazem tantas vezes os padres quando reconhecem amigos e se regozijam de ali os ver. Mas nada! E na minha alegria de O receber, fiquei triste pela minha Mulher e pelos meus Filhos, votados ao ostracismo sem saberem porquê, espantados com tanta maldade gratuita. Nenhum deles se chama Ovídio, mas esse, mesmo assim sabia porque é que Augusto o tinha desterrado para Tomes, nos confins do Império. Ovídio tinha-o traído com a mulher dele. Foi essa a razão, embora questionável, pois se a Imperatriz não foi forçada a fazer o que fez, mas pelo contrário se sentiu feliz nos braços do poeta, e com ele manteve uma longa amizade, então deveriam ter ido os dois, continuar a viver a sua concupiscência, lá para o país dos Getas.
Tudo isto seria de fazer rir o mais sisudo, se não fosse trágico. E eu não sou tragígrafo. De qualquer maneira ontem foi, a "anagnórises", de uma tragédia que ainda se acreditava estar na "peripécia". Como me enganei! Como tanta gente continua a viver enganada! Julga-se puderem ter escrito a "Arte de Amar", mas não lhes faltou inspiração para escreverem uma "Arte de Fingir", ou de rescreverem a "Arte de Furtar", já que souberam roubar a confiança que neles tanta gente tinha posto. Mas esse interessante livro já foi escrito no século XVII.
Mas na boa tradição portuguesa tem mesmo de ser para rir, como por cá se faz desde as "Cantigas de Escárnio e Maldizer" (embora elas andassem sempre de braço dado com as "Cantigas de Amigo" e as "Cantigas de Amor"), passando mais tarde pelo extraordinário Gil Vicente, com os seus autos tão sarcásticos, e mais recentemente por Nicolau Tolentino ou mesmo por Barbosa du Bocage.
E ao lembrar-me de Bocage apeteceu-me transcrever para aqui um pequeno poema que já escrevi há uns bons tempos:
"Quero enlouquecer
De névoas e de sonhos.
Quero partir para fins
De que nunca soube,
Nem saberei os princípios.
Quero viver vidas de outras vidas,
E "ser tudo de todas as maneiras",
Por estes lugares perdidos.
Onde ninguém é ninguém
Quando é esquecido
Pela própria Mãe.
Mas isto assim
Não é mundo, é imundo,
Onde mais amo as diferenças
Feitas das coisas primeiras.
"E já Bocage não sou",
Nem nunca fui.
Mas como ele "desfeito em vento"
Nesse soneto escrito na agonia
Ando de ruptura em ruptura,
A suspirar, isso sim,
"Pela paz da sepultura".

É claro que não vou ser lido por quem eu mais gostava que me lesse, porque, como já disse, não leem nada, a não ser, talvez, (procuro dar sempre o benefício da dúvida), jornais como "A Bola" ou o "Record" ou talvez alguma de mexericos sociais onde aprendem algumas torpezas que ainda não conheçam, o que é difícil. Mas tudo isto não pretende ser mais do que uma reflexão, pois doutro modo era dar a esta questão demasiada importância, e ela só tem, quanto muito, a importância deste pequeno e paupérrimo panegírico à mediocridade e ao farisaísmo hipócrita e até a um certo idiota-cretinismo, que pelos vistos afecta muita gente naquela família, talvez por hipotiroidismo ou falta de iodo. Coisas hereditárias. Afinal, e vendo bem, não estou sequer a pensar em pessoas, mas apenas em falácias, já que ainda por cima são muitos e daí o ruído parecer ser maior. Mas é só ruído, um ruído feito de silêncios e de coisas escondidas.
Felizmente tenho um Amor muito grande pela minha Mulher, pelos meus Filhos e pelos meus Netos que tanto adoro e alguns Amigos por quem tenho também um grande amor e ternura (o que sempre lhes fez imensa confusão) e que sempre estiveram ao nosso lado neste dia onde mais uma peça foi representada no palco da vida. Não sei quem me contou esta história mas penso que até sou capaz de o conhecer".

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