quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Vozes

Oiço vozes, sem conseguir perceber de onde veem. Fico parado, atento, expectante. Oiço coisas que me parecem vir de lugares que não encontro. É possível que apenas seja só eu a conversar com as minhas fantasias
Mas oiço vozes que veem bem do fundo da terra acabada de arar. Vozes que são a forma que encontro para ver uma árvore a nascer. As raízes enterradas a pouco e pouco vão sendo tronco, e ramos, e folhas, enquanto tu e eu começamos a subir, a subir até à copa, onde então nos abraçamos, beijamos, nesse espaço que é nosso, muito nosso, só porque o inventámos.
Depois damos as mãos e vamos passear juntos pela cidade, como por um corpo, como pelo lugar de um corpo, como por um olhar, ou um sorriso, ou um gesto desse corpo.
E passeamos pela memória do que sou, pelas memórias do que somos, e é assim que vamos criando os nossos próprios ídolos a partir de ideias e de conceitos que fomos encontrando, ostracons de nós mesmos, cacos das estátuas que fomos descobrindo e esculpindo nas pedras enormes que há  por dentro da nossa relação. Criámos depois o espanto de nos encontrarmos em tudo isso, em todos esses cacos de que também fazemos cores e sons, numa sinfonia incompleta, tal como nós vamos vivendo a nossa incompletude.
Não é importante o lugar onde estamos, porque todos os lugares para nós são simbólicos, porque em todos eles nos encontramos e desencontramos, neste vivermos esta história inútil. Apesar disso não há em nós fracassos nem tédios, nem nunca a vida nos aparece cinzenta e sem graça, mesmo quando os lugares são os loculi , esses nichos nas paredes das cavernas onde os antigos costumavam sepultar os seus mortos.
E quando penso e te digo que um dia a morte acabará por nos separar, sinto bem como essa morte será apenas o pouco que do nada há-de sobrar, dos beijos que nos demos e dos que ficaram por dar, do que nos dissemos e do que ficou por dizer, do dia a dia que vivemos e dos espaços que ficaram por preencher.
Sempre que perdi a minha sombra foste sempre tu quem a encontrou e ma devolveu. Foste sempre tu, mulher de onde a vida brota, que me ensinou a compreender que o princípio e o fim são um só, já que o viver e o morrer são um acto único porque a vida só se renova com a morte.
E devotei-me a transformar-me e ser um simples ramo pensante da árvore primordial, tão submisso como eu aos ventos do espírito.

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