domingo, 7 de setembro de 2014

Depois

Depois juntei o mundo aos meus assombros, como num subtil encontro de sombras. E olhei-te os olhos, e pareceram-me lagos, onde se podiam reflectir os meus desejos e as minhas tristezas, os medos, os amores e esta obsidiante incerteza que me apunhala o peito e o sentir, só por não saber de quem são as mãos que seguram o punhal que me assassina.
Depois tentei juntar os afectos, mas vi que foram os afectos que se juntaram no teu rosto, onde fui encontrar o sorriso que as minhas mãos te foram dando. E beijei-te esse sorriso.
Como Anna Arendt, discuti sempre comigo a banalização do mal. E o mal, perdoando tudo o que me fizeste sofrer quando me cravaste o punhal com que me assassinaste o sonho de te continuar a sentir.
E no tempo em que o tempo me dava tempo e não andava sempre a correr atrás de mim e a querer, por tudo e por nada, que houvesse tempo, e eu o sentisse, feito de dias e horas, e momentos, para que o encontro e o reencontro com o  tempo fosse apenas um estar.
Hoje o tempo passa por mim como uma estrela cadente, e quando vou a reparar nele já ele passou e me deixou a amarga sensação de mais uma vez o ter perdido.
Quando era pequeno, o tempo era uma estrela fixa no nada, e onde a terra girava à volta dele, e eu, fazendo-me pensar que me tirava a sombra e as sombras a tudo para que eu olhava, fantasmas recortados no medo de que o amanhã já não viesse ou viesse cedo de mais, sem me avisar, e me apanhasse desprevenido. E a sombra do tempo caia-me em cima, com força e brutalmente, e magoava-me os ossos, apertava-me o peito ao ponto de me fazer sentir falta de ar, ou perdido no meio de um mar, sem rumo nem quaisquer referências.
Foi quando tentei desenhar meridianos, paralelos, tirar azimutes, usar um sextante que ia a pouco e pouco inventando, mas que o tempo me tentava tirar das mãos, enrodilhando-me feito vento, para acabar por me fazer perder, de mim, de ti meu amor, por entre cores que nunca tinha visto e sons que nunca tinha ouvido, num infinito de sentires, de que não conseguia desenhar as sombras que de mim fazia o tempo.
E ansiosamente procurava alhear-me do tempo, da morte, do fim, para poder viver apenas num sempre eterno presente, que eternamente fosse um retorno ao momento, em que os nossos olhares se cruzavam, sem noites e sem dias no calendário da vida nem no calendário da morte.
Senti então que havia em mim um espírito que tudo envolvia, e me fazia sentir matéria, perceber-me matéria, essa substância de que tudo é feito menos eu, e tu.
Depois entrei numa igreja onde um organista tocava Bach e me fez sentir não ali, naquele momento, ma, depois. E não ouvi mais nada, porque o que poderia ouvir, me obrigava a esperar por depois.

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