segunda-feira, 28 de outubro de 2013

E dei a volta

E dei a volta à esquina desse tempo que já tinha passado por mim há muito tempo, nas muitas lágrimas que como esquinas da vida também já fui dobrando à força de as sentir a queimarem-me os sonhos. Os sonhos que sempre foram, verdadeiramente, a única coisa a que posso chamar meu.
Depois senti-me a cegar, a ser o cego que toca acordeão nas esquinas e a quem ninguém dá esmola, embora ele as peça por amor de Deus.

Corri o mundo a uma velocidade maior do que a da luz. À velocidade do meu pensamento, espezinhando quantas de ansiedades por lhe encontrar um fim.
Mas o meu mundo corre à minha frente, e é como a minha sombra, quanto mais corro mais ela me foge. Mais ele me foge, esse mundo que apenas existe porque o penso.

Continuando

E nesse limite que é o Céu, arranjo sempre, mesmo assim, maneira de muito lentamente me passar para o lado de lá, aproveitando a luz da Lua, que me vai alumiando o caminho, que nunca é o mesmo de umas vezes para as outras, embrulhado constantemente pelas nuvens e pelas luzes que me chegam vindas de outros astros que ainda não conheço, e pelos meus pensamentos ausentes e perdidos em devaneios de neflibata grego, perdido, sim, perdido e quase louco por te encontrar e te ter, por fim, dentro de mim, meu amor dos olhos de água.

sábado, 26 de outubro de 2013

Mise en abyme

Ponho este título para a sequência de textos que aqui quero pôr hoje (vou juntando papelinhos à espera de ter uma oportunidade para os escrever na Noite transfigurada),  não na tradução correspondente ao termo que André Gide terá usado pela primeira vez, mas sim simplesmente como histórias que têm dentro de si outras histórias.

Acordei e parti de mim, ainda meio ensonado, a caminho do teu olhar.
Peguei-te depois nas mãos e beijei-as, como quem sorve a vida, como quem, realmente, se deixa morrer de amor.
Sim, foi assim que acordei hoje.

E escrevi livros, e desenhei mapas e portulanos, depois até compus músicas para o meu fim, não como requiems, mas como trechos para ir ouvindo, na esperança de que assim a vida se condoesse e me desse um pouco mais de vida, um pouco mais de tempo para te poder encontrar.
Fiz de tudo para te ter, e acabei na praia, só, a olhar para o mar que me ia engolindo a pouco e pouco, na lentidão ritmada das marés a mudarem, levando com elas os meus sonhos.
Só te consegui ver muito mais tarde na linha do horizonte onde o Sol se começava a esconder.
E então fui a areia para onde escorreram, até desaparecerem, as lágrimas que por ti chorei.

Fui leitor assíduo das crónicas que foste escrevendo nos castelos de vento onde davas as tuas festas, e de que fomos fazendo a nossa história.
E li-te como sempre da direita para a esquerda, para que só eu entendesse o que lia, nessa maneira críptica de te  ter só para mim e te poder guardar dentro dos meus pensamentos, num medo quase pânico de te perder e ser contigo essa perca, de ti e de mim, num mundo que não nos é dado entender.

Senti-me a enlouquecer, nessa loucura fria e calculada, de um rigor extremo, que pensa e reflete e se angustia para conseguir conhecer o tempo, para poder depois esperar por ele, tornando-me a própria razão de ser, de uma forma lúcida, demasiadamente lúcida, a geometria das memórias e das recordações, das fantasias e dos sonhos, no mais umbroso do meu coração, que era já a caverna dos meus sonhos de quando eu, Platão, te sonhava.

E tudo acreditei que durava para sempre, que era eterno e ao mesmo tempo, momento, apenas, num para sempre, feito de acasos e de necessidades, feito da avidez com que te olhava, e nesse olhar, sentir, os meus sentidos todos baralhados

Veem-me e olham-me, mas não sabem o que vêm nem sabem para onde olham. Porque eu ao passar dos sons às cores que ninguém percebe, sou apenas a palavra, que por ser tão simples, ninguém entende.

Porque vou deixando pedaços de mim, por aqui e por ali, naquela criança que chora e naquele velho vergado pelos pensamentos de que já se esqueceu, naquela mulher sozinha que estende a mão a pedir a esmola de um beijo, por amor de Deus, ou naquele homem devastado pela tortura da carne, por todo o lado me perco, me pergunto, me estilhaço com este meu olhar de procura, um olhar feito dos silêncios de que vou fazendo a permanente busca do som apetecido.

A certeza de não ter certezas. As incertezas que me avassalam e que me dão a certeza de que só me encontro quando me perco.
Nunca cheguei a conhecer Heisenberg, e por isso nunca lhe pude dizer que o "princípio da incerteza" sou eu.


E procuro ritmos até no meu andar, no meu olhar, no meu sorrir.
Procuro ritmos nas coisas e nas pessoas com que me cruzo.
Procuro ritmos nas marés e nos pôr do Sol, na chuva que me fustiga e nos ventos que trespassam gelados o meu corpo nu.
Procuro ritmos nas músicas que não oiço e nas cores que não vejo.
Procuro ritmos nos beijos que não dou e nos abraços que não sinto.
No fundo procuro simplesmente o ritmo de mim mesmo, o ritmo de que me sou.

O céu é o limite. Como no amor.
Não foi Santo Agostinho que disse que o limite do amor é o amor sem limite?

E trato por tu, com toda a intimidade de velhos amigos, as lendas e os mitos, porque tudo isso também é meu, e é de lendas e de mitos de que me faço.