sábado, 21 de novembro de 2009

A Pintora

Aqui há tempos o meu Amigo Gonçalo Leandro pediu-me para escrever um texto para a apresentação de uma pintora que ia expor na galeria dele. Escrevi o texto mas nunca mais o tinha visto. Agora encontrei-o e antes que se perca de vez vou transcrevê-lo para aqui, enquanto ouço o Concertino para guitarra e orquestra de Bacarisse, peça que aliás eu e o meu Amigo Nuno Bandeira elegemos para hino da nossa Amizade. E o texto é este:
Vera Esquível consegue dizer a pintura e o desenho, criando um alfabeto de imagens e símbolos, mas também de palavras, muitas vezes invertidas, desconstruidas, onde pudemos ler a angústia perante o corpo interdito.
Esse "locus infectos" da tradição, e a "virgo non intacta" que é, nestes trabalhos feito de ansiedades e sonhos perdidos, feito de sonhos por conseguir, feito do que por fim alcançam: o traço que cria, que imagina e simboliza, que sente e faz sentir uma alma que procura.
Depois vem a cor, quase sem cores, no fundamental, primordial, preto e branco, deixando o verde e o encarnado para o mais fundo de uma semiótica, que transporta em si mensagens para serem interpretadas por quem, na impossibilidade de as simbolizar, as diaboliza.
Ao definir com este alfabeto, emoções e sensações, que no fundo têm a ver com todos nós, Vera Esquível consegue transmitir uma inquietação criadora, que nos faz pensar em como ser de outras formas, formas ao nosso alcance mas de tantas maneiras reprimidas.
Alguns desenhos de Vera Esquível, transportam-me ao universo do (também mas não só como toda a gente sabe) opiómano Jean Cocteau, pois nestes desenhos encontramos a busca do corpo vivido, mesmo se dissociado ou reduzido a uma dinâmica do espaço.
Aqui o homem, ou as figuras humanas, são captadas pelo espaço, de uma maneira neurótica, em que a dinâmica "oculta do espaço", dá um sentido ao absurdo.
Vera Esquível como que ilustra alguns dos temas de "A Nova Desordem Amorosa", de Pascal Bruckner, como por exemplo, "o esquife peniano no rio do amor" ou "os corpos incertos" ou ainda "a canónica quimera do orgasmo".
Há a agressão, o perdão, a reconciliação, num jogo de linhas e palavras, de gritos e de silêncios amordaçados, do desejo fálico transformado em oração. Há um não-lugar para o erotismo feito de espaços de diálogo entre as formas.
Tal como José Gil é considerado o "filósofo da carne" ( é discípulo de Deleuze), Vera poderá ser a desenhadora da carne onde se descobrem as cicatrizes, cesuras como pausas ao fim do primeiro hemistíquio do verso alexandrino, ou a última sílaba de uma palavra que começa o pé de um verso latino ou grego.
E dou comigo a tentar encontrar uma correspondência entre o verbal e o visível, a debruçar-me sobre o fantástico na arte, sobre a arte e o erotismo e apetece-me citar Ahmade Ashai "o paraíso do gnóstico fiel é o seu próprio corpo, e o inferno do homem sem fé nem gnose é igualmente o seu próprio corpo".
Paul Klee " escutava os murmúrios que preenchem o silêncio...", Vera Esquível, preenche os espaços que desencadeiam em nós e na nossa imaginação a frase de Merleau-Ponty, " ver, é sempre ver mais do que vemos".


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