sábado, 3 de março de 2012

Há muito tempo

Há muito tempo, já lá vai mesmo muito tempo, comecei a pintar. E pintei durante alguns anos. Comprei um cavalete, uma paleta e era eu mesmo quem fazia as telas, de uma maneira muito artesanal que já não sei quem me tinha ensinado: um bocado de pano de um lençol velho, umas pinceladas de gelatina para endurecer ao Sol, e uma camada de tinta branca para criar um fundo. Depois pintava o que me vinha à cabeça, tentando juntar côres em geometrias fractais, sem limites definidos, como se fossem nuvens, labaredas, ventos . . . e tentei mesmo pintar o vento e fixá-lo na tela improvisada. Mas nunca consegui agarrá-lo para que posasse para mim.
Depois quando punha na parede o quadro que tinha pintado, ficava a olhar espantado, porque só lá via a mancha que o quadro lá teria deixado, quando dela se tira ao fim de muitos anos para ser restaurado.
E tentava pintar o que isso me fazia sentir. Pintar a mancha e o espanto, pintar o sonho que era isso tudo. Pintar a dor de não conseguir pintar. Mas nem isso consegui. E deixei, aos poucos, de pintar, porque dentro de mim as côres eram muitas e só uma, como a côr da parede onde tentava sempre pregar o quadro. Branca, toda branca, da côr do sonho. Ou da cor dos tubos a secar. Da tela por pintar. Do sonho por sonhar.
Depois, como que a querer imitar o Santa-Rita Pintor, fingi que estava em Paris, que o Sena corria por dentro de mim, e atirei também tudo ao rio, a um rio que era feito de pessoas, de pessoas que passaram e correram pela minha vida e nunca cheguei a saber quem eram.
Depois não me suicidei como ele, mas escrevi um manifesto anti-côr-forma que assinei com uma pintura donde escorria um sonho em forma de lágrima, em forma de canto. Depois deitei-me e tapei-me com ele como se ele fosse o meu sudário. Como se me deitasse com uma Verónica qualquer que também tivesse passado pela minha vida inquieta.
E deixei-me secar, como os tubos das tintas que um dia acabei por abandonar.

Sem comentários: