quarta-feira, 16 de julho de 2014

Apontamentos

Porque tal como diz Pessoa, somos todos seres fluídos e em transformação. E o que nos mantem vivos é essa incessante capacidade que temos, de nunca hoje conseguirmos ser o que fomos ontem.
Lavar a cara duas vezes na mesma água do rio? Impossível, como disse o grego e com toda a razão, porque nunca somos o que já fomos, nem nunca seremos aquilo que sonhamos. Somos, e basta, convidados sempre a lermos a pluridade do universo, a partir da nossa singularidade tantas vezes genial. E o que é o génio senão uma longa paciência?
A verdade é que não passamos, de facto, de um episódio da imaginação que nos ensinaram ser a realidade. E a realidade, sobretudo para quem pensa, é um pluriverso onde os vários universos apenas são as nossas diferentes e quotidianas maneiras de ser e de estar.


O nosso dia a dia é feito de chavões, de slogans, de frases feitas. Vivemos embrulhados numa publicidade que nos distrai e nos leva por caminhos que nem percebemos que não são os que traçámos.
Também em relação a estas coisas Fernando Pessoa foi, e será sempre para mim um mistério, porque no meio de tanta genialidade que ainda hoje tantos estudiosos procuram entender e interpretar, criou slogans, como por exemplo, para as cintas Pompadur, com o vestem bem e nós ajudamos sempre a vestir bem; ou como nas tintas para automóveis, as Berryloid, em que se passava a camurça nos veículos mas só de óculos fumados porque o brilho deslumbra; ou ainda para a Coca-Cola, talvez inspirado na vida de D. Quixote e Sancho, do Miguel de Unamuño, e que dizia o célebre primeiro estranha-se depois entranha-se. 


A música como metáfora permite a Mallarmé ignorar a referencialidade latente na linguagem verbal e na poesia dos surrealistas há aquilo que se poderia entender por uma outra gramática, a da imaginação. E a imaginação, é o ser capaz de encontrar sentido onde não há sentido nenhum.
Aliás a poética do romantismo, assenta numa estética da imaginação, e como diz Breton, é no romantismo que se encontram as raízes do surrealismo.
E andando um pouco para trás no tempo, olho para o par de botas que Van Gogh pintou e que foi objecto de uma tão sugestiva análise de Heidegger, quando procura abordar a natureza do conhecimento. E nesse conhecimento cruzam-se ou estão cerzidas, múltiplas linhas de sentido, ao que se pode chamar polissemia, a qual tem sido vista como uma das características da criação artística.
Essa referencialidade circula ou dispõe-se ao longo de construções imaginárias, plasmando-se numa dimensão que é a própria cultura. É aí que a imaginação se encontra com a história, ou melhor, com a memória. A Arte tende pois a ser um complexo equilíbrio entre a imaginação e a memória.

No fundo

No fundo sou um empregado de balcão como outro qualquer. Passo o dia a atender pessoas, que me veiem falar de tudo o que lhes apetece. E eu oiço-as com toda a atenção, numa escuta incondicional e positiva, e procuro compreende-las o melhor que sei e posso. No fundo sirvo-as.
Há muitos anos fiz um estudo sobre o alcoolismo e os alcoólicos, e por isso tive que me empregar num bar três dias por semana. Foi uma experiência única e muito rica, ora atrás do balcão, ora a servir às mesas e a quem por ali andava de pé. Ainda hoje me lembro de como nesse bar continuava a ouvir pessoas a desabafarem comigo entre dois copos. Ou por entre muitos, lá mais noite adentro.
E no fundo, todos nós, de uma maneira ou de outra passamos a vida a atendermo-nos uns aos outros nas mais variadas circunstâncias. Por mais alto que seja o cargo, por mais ricamente que o gabinete seja decorado, temos sempre um balcão pela frente. E o curioso é que toda a gente acaba por se esconder atrás de qualquer coisa, porque no fundo toda a gente, de uma maneira ou de outra, passa a vida a esconder-se de muitas coisas, começando por se esconder de si mesmo. Serão raras as excepções.
No fundo sou um empregado de balcão como outro qualquer, e no meio desta imensa girândola de maneiras de estar na vida, vou sendo, gerundicamente, tudo o que está em mim em potência.

Fiquei a escutar

Fiquei a escutar o teu silêncio com toda a atenção, depois das coisas horríveis que me disseste. Saíste de ti em gritos de descontrolo, em gestos e trejeitos como os de quem anda muito perto da loucura.
Não tirei as mãos dos bolsos senão para pegar no lenço da minha paciência e com que depois te limpei as lágrimas e o nariz.
Depois esse teu silêncio começou a pesar-me demasiado e afastei-me para longe pensando que assim te poderia ouvir melhor. Mas o teu silêncio ainda me agrediu mais, e quando te olhei bem nos olhos, senti que te tinhas arrependido de tudo o que me tinhas dito. E eu perdoei, perdoei com um aceno de paz que trazia escondido nas mãos e dei-te um beijo. Então chorei todo aquele nosso desencontro, toda aquela nossa despedida, enquanto uma fanfarra tocava ao longe a música do nosso desassossego.
Passei ao quadro seguinte e até me sentei num sofá para melhor e mais calmamente o poder ver e apreciar. Era de facto desconcertante, desarrumador, fantástico.
Havia imensa gente no museu, e tu vieste sentar-te ao meu lado a sorríres-me e cheia de cumplicidade.

E sento-me

E sento-me numa pedra em forma de infinito. Olho para lá das coisas, mas ficam sempre coisas agarradas a mim, que não me largam nem dão descanso. E tudo o que vejo são carnes apetecidas, cheias de cor e bons cheiros, em imagens gastronómicas de um bom cabrito à padeiro ou de um arroz de lampreia em travessas de loiças finas. E há nisso tudo um erotismo avassalador, e no verdadeiro sentido da palavra, no Eros deus da vida.
E saboreio o que vejo e até preciso de um guardanapo para limpar os olhos, porque é nos teus olhos que vejo planuras e ao mesmo tempo arranha céus, de uma arquitectura de sons, imagens e movimentos, a caminho da verdade, do belo e do bom, neste drama existencial que é o mistério da vida, que nunca se conhece, nunca se sabe o que é, simplesmente se imagina.
E continuo sentado numa pedra em forma de infinito, à espera que o dia volte a nascer e já seja amanhã.

domingo, 13 de julho de 2014

Rothko

Li Mark Rothko, sim li, ou tentei ler, um pouco como o que fiz com o "Ulisses" de James Joyce.
Talvez por ter nascido na Rússia czarista, Rothko, nos seus escritos, disse, e eu retive, que se deve ter uma grande proximidade com a tela, porque só assim faz sentido para que exista uma comunicação com ela, num abraço íntimo, num mergulho, quase que como no acto de posse amorosa, com a pintura.
E é quando também eu me transfiguro nesse acto amoroso, e me fundo nessa matéria, que é o homem de carne e osso, a fundir-se com o que ama, como numa paisagem feita de campos de força e de acção, com um dinamismo próprio, e que no abstracto de Rothko, é a fusão entre a pintura e o pintor, numa ambiguidade criadora, que se balança entre o que vejo e o que a partir dai se metamorfoseia.
Como ele também eu li "O Nascimento da Tragédia" do Nietzsche", sobretudo quando diz "que a tragédia grega é uma tentativa humana de compensar os terrores de uma vida mortal".
E com os "Escritos Sobre Arte" e "A Realidade do Artista" debaixo do braço, fui visitar a capela Rothko, em Houston, no Texas.

Vou andando

E vou andando, não só atento ao espaço que percorro, mas também ao movimento das coisas, e  de tudo o que tem movimento à minha volta, que por mim passa e me acontece. Até às pedras, porque a essas empresto-lhes o meu próprio movimento e é assim que elas vão comigo, arrastadas pelo meu sonho de lhes conseguir dar vida.
Paro numa curva da estrada para pintar as paisagens e, enquanto pinto, vou-me apercebendo das diferenças entre o que sou, o que penso e o que sinto, e a pouco e pouco vou arrumando tudo dentro da minha memória. E não é um imanentismo sem qualquer objectivo que sei nunca me poder levar senão ao nada, mas uma outra forma de me pensar.
E fico-me com o que sinto, só porque sinto estar nesse movimento, de mim nas coisas e das coisas em mim, a forma mais poética com que me minto.
Depois então é que encontro luz, nos teus olhos, em que só vejo sóis, que não só me dão luz como me aquecem, num movimento que é intrínseco a esse olhar-te e perceber-te o brilho e a expressão de onde me vem a luz de todo este sentir-te que me ilumina o pensamento e me ajuda a lembrar-me de Aristóteles, quando me debruço sobre a imitação idealizada das coisas, como uma farsa exercida sobre o real. O que vejo e o que sinto, é apenas o que vejo e o que sinto e não pinto mais o que vejo, porque descubro que primeiro tenho que aprender a ver, culturalmente, como dependo de tudo o que sonho.

sábado, 5 de julho de 2014

Tenho

Tenho ainda muitas coisas escritas à mão, à antiga, e em granel, à espera de vez para aqui vir parar. E tenho que começar a dar-lhes uma ordem, que é uma coisa que eu ainda não aprendi a fazer.
Mas como Artur Rimbaud, vou dando cores às letras e com as letras pinto telas em branco. Estas.
Depois é que lhes dou forma e é assim que mapeio o meu reino, como Wallenstein queria fazer. E não corro o risco de que o imperador Fernando II me condene à morte por alta traição.
Por isso sou um nómada que deambula pelas perguntas e ansiedades, nessa forma nova e cosmopolita de ser nómada, esquecido de quem descendo, e que nem a uma língua qualquer alguma vez me vou querer ligar.
Sou apenas um discreto herói da minha liberdade interior, por que tenho sempre de lutar, um desesperado do instinto, um agonista convicto de que assim me vou "da lei da morte libertando",
na luta por nada a não ser por mim, porque não sou nem quero ser, nenhum Garibaldi, nenhum Venizelos, De La Valera, ou Bismark, ou mesmo um dos que deu o grito de Almacave, ou outro qualquer desses que ficaram na história por lutarem pela independência ou pela unificação dos seus países, não, eu só me quero esquecer de mim, e das correntes que me atam a um leme de uma caravela que não sou eu. Quero poder ser outro, esse outro que trago sempre comigo, bem dentro de mim, nas minhas perguntas, neste meu querer sentir tudo, como um artista, que pinta, escreve ou esculpe aquilo que é e não o que os outros possam pensar que ele seja.
A ciência é lenta e sentir é tudo o que me resta, e ajuda a guardar bem dentro de mim o segredo da criação. E às vezes penso que é tudo o que tenho. Mais nada!

sexta-feira, 4 de julho de 2014

FAZER

Fazer é ligar-me a um acto de vontade, que no entanto não é criar. Fazer é libertar-me de mim e conseguir transformar em poema todo o meu dia a dia, é encontrar harmonia entre o espírito e o sentimento, é ficar ruborizado ou empalidecido com um olhar que me atravesse, trespasse, e me deixe agoniado, neste meu todo de ser, como um fruto, polpa e caroço, pele e sensação e saber separar o que tem valor poético e eterno de tudo o que é transitório e insuficiente, na agonia em que cada vez mais me sinto, na agonia em que sei ser sempre eu a perder.


Pensei ser capaz de sentir ao mesmo tempo o relativo da hora e o absoluto do tempo.
Pensei ser capaz de viver os valores em que acredito, sem me deixar ficar enamorado e preso ao momento que passa, e me leva sempre com ele, um pouco . . .
Pensei que tinha sempre em mim a celebração dessa noite de Walpurgis, não a lembrar-me da santa, mas da feiticeira e demoníaca, que nesse dia saía à rua para se reunir com as outras, num sabat de bruxas do espírito, num capriccio alegre e saltitante, em que eu não lutava pela posse de nenhuma condessa viúva como em Strauss, mas numa gigantesca e incontrolável euforia do meu cérebro em luta com as minhas possibilidades.


Inebriei-me de tempo, como se com um álcool desvairador, capaz de me perturbar ad infinitum, narcotizado, adormecido e transformado no próprio Morfeu, também eu filho da Noite e dos Sonhos e ser a sombra de mim, apenas, como ficaram os mortos depois de Orfeu ter passado por eles, sem os ter reconhecido, quando da viagem que fez pelo Mundo Inferior em busca da sua Eurídice.
E também eu aprendi a tocar lira, para ser como ele quando a tocava e os pássaros deixavam de voar para lhe ouvir a música, e nunca mais olhei para trás, não fosse Hades castigar-me a nunca mais ter tempo para continuar à procura de Eurídice.
Mas consegui esconder-me da minha sombra, debaixo de um outro tempo, feito de um fogo que me queimava, com línguas de um fogo que me beijava. E dessas línguas saíram muitas outras, que me confundiram ao ponto de eu me esquecer de falar. Mesmo assim tentei encontrar Mezzofanti, já que ele sabia mais de cinquenta línguas, mas ele já tinha morrido há quase duzentos anos.
Mas os vapores do tempo inebriaram-me cada vez mais e deixei-me ir, adormecido e inconsciente.